
Liberdade espiritual
13/06/2025
Por Marcelo Santos
A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que, até 2050, cerca de 3 bilhões de pessoas viverão em favelas. No Brasil, há 12.348 comunidades onde residem 16,4 milhões de indivíduos (8,1% da população), conforme dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Esse dado reflete a falta de investimento governamental em habitação, infraestrutura e capacitação profissional. Diante desse cenário, a fé cristã precisa ser consciente e ativa”, opina o escritor, professor e jornalista Marcelo Barbosa da Silva, 40 anos.
Nascido e criado em Heliópolis, a maior favela de São Paulo (SP), ele transformou sua história em literatura, reflexão e impacto social. Autor da trilogia Favela no Divã, que aborda os efeitos da desigualdade na saúde mental, Marcelo se tornou tema de um documentário homônimo lançado recentemente. “Minha fé me fez compreender que Deus não nos criou apenas para sobreviver, mas também para viver plenamente. Por isso, os valores de amor ao próximo, respeito e esperança permeiam a minha obra”, ressalta ele, que é casado com Alice Luísa, 35 anos, e pai de Vinícius, 10, e Artur, 7.
Marcelo da Silva construiu sua própria rota de superação ao encontrar, na fé e na educação, os alicerces para transformar não apenas sua realidade, mas também a de outras pessoas ao seu redor. Foi ainda na infância, na escola bíblica dominical, que o escritor descobriu o gosto pela leitura e pela interpretação de textos. A conversão aconteceu na adolescência, quando passou a frequentar a Igreja Presbiteriana Independente do Moinho Velho, na zona sul da capital paulista, da qual é membro até hoje.
Nesta entrevista à Graça/Show da Fé, Marcelo da Silva fala sobre a sua obra, destacando o papel transformador da evangelização nas periferias. Segundo ele, nesses espaços, a fé é, muitas vezes, a última fronteira entre o desespero e a esperança.
Como foi transformar as memórias da infância e da adolescência em Heliópolis na trilogia Favela no Divã?
O processo começou na pandemia de covid-19, quando enfrentei crises emocionais e desenvolvi depressão. A terapia psicanalítica me ajudou a perceber que muitas angústias estavam enraizadas em traumas da minha vivência em um cenário de vulnerabilidade social. Além do tratamento, mergulhei nos estudos e passei a escrever um diário. Ao reler minhas anotações, percebi que minha história poderia ecoar em outras pessoas com experiências semelhantes. Meu público se identifica especialmente com a influência do meio social no comportamento humano. Assim, surgiu minha incursão na literatura, que uso para compartilhar essa jornada de autoconhecimento.
Em Favela no Divã, o senhor analisa a realidade psicológica dos moradores da periferia. Como a fé cristã pode ser uma ferramenta de transformação para quem enfrenta traumas nesse contexto?
A fé pode ser um instrumento poderoso nesses casos, desde que seja racional. A fé emocional, sem um entendimento sólido da realidade, pode ser perigosa. Deus tem promessas para nós, mas também nos alerta sobre os desafios do mundo. Ele nunca negou as dificuldades nem as consequências do pecado na sociedade. O Senhor nos dá ferramentas para superar adversidades, porém a transformação envolve tanto um resgate espiritual quanto um movimento social e econômico. Uma fé racional alia esperança e ação. Precisamos quebrar ciclos históricos de desigualdade e criar oportunidades reais de mudança para quem vive nas favelas.
De que maneira a formação cristã moldou a sua visão de mundo e influenciou sua trajetória como escritor?
Ao abrir suas portas para os jovens da favela, a igreja [Igreja Presbiteriana Independente do Moinho Velho], que era de classe média alta, proporcionou um ambiente que ampliou minha visão de futuro. Passei a conviver com pessoas que falavam sobre universidade e novas possibilidades, e isso me ajudou a enxergar caminhos além da realidade em que eu vivia. Minha fé teve um impacto essencial, especialmente pelo contexto social em que cresci. Ainda na infância, na escola bíblica dominical, aprendi histórias das Escrituras de maneira interativa, o que me mostrou como a leitura da Bíblia poderia trazer crescimento.
Como a fé ajudou o senhor a enfrentar os desafios da periferia em sua jornada pessoal?
Apesar das desigualdades do mundo, é possível alinhar-se aos propósitos de Deus. Perceber que a favela não precisava ser um destino final foi o ponto de virada. A partir disso, comecei uma busca por transformação espiritual e social, com envolvimento em debates e políticas públicas. No entanto, sair da favela é desafiador, pois muitos de nós crescemos dependentes de doações e sem noção de autonomia financeira. Essa realidade me motivou a uma mudança profunda. Minha conversão aconteceu nesse processo, que levou 15 anos, com foco em planejamento, estudo, trabalho e educação financeira até alcançar a independência.
Qual foi o episódio que se destacou, dando início à sua caminhada de fé no Evangelho?
Minha relação com a música mudou ao entender que seguir a Cristo exige abrir mão de certos comportamentos. Nos anos de 1990, atuei no movimento Samba na Favela, mas, ao ser confrontado pelo Espírito Santo, percebi que o ambiente promovia práticas contrárias à minha fé. Apesar do amor por esse gênero musical e do reconhecimento da beleza da cultura popular, decidi me afastar, mesmo diante de críticas. Mais tarde, criei o grupo de samba cristão Algo Novo, unindo música e princípios bíblicos.
Como sua experiência em Heliópolis influencia seu olhar sobre a evangelização nas favelas?
Minha vivência me ensinou que a mensagem deve ser clara, para que a pessoa saia daquela condição. Isso exige tempo, esforço e recursos. A evangelização eficaz precisa ir além das questões espirituais. É necessário entender o contexto, obter permissão para atuar na comunidade e oferecer suporte concreto: intelectual, social e financeiro. Apenas palavras de apoio não bastam, é necessário haver compromisso real e transformação prática.
Marcelo Barbosa da Silva
Escritor, professor e jornalista