Na prateleira – 255
01/10/2020
Medicina e Saúde – 255
01/10/2020
Na prateleira – 255
01/10/2020
Medicina e Saúde – 255
01/10/2020
Foto: everythingpossible / 123RF

Escravo da tecnologia?

Uso excessivo da internet pode levar ao adoecimento mental e físico

Por Ana Cleide Pacheco

Todos os dias, a assistente social Vânia Maria Loureiro, 53 anos, vai de sua casa, no município de Niterói (RJ), ao trabalho, no Centro do Rio de Janeiro (RJ). O trajeto pela Baía de Guanabara é feito de barca e dura cerca de 20 minutos. Para passar o tempo, geralmente ela leva consigo um livro ou uma revista. Mas, há cerca de dois anos, um fato inusitado aconteceu. Certa manhã, em lugar de ler um material impresso, decidiu acessar suas redes sociais durante a viagem. Estava completamente distraída pelo deslizar de fotos e textos no aparelho quando alguém tocou seu ombro. Era um marinheiro de convés, avisando a ela que a barca havia atracado e era hora de descer.

A assistente social Vânia Maria Loureiro: “Acredito que precisamos ter domínio próprio. Por essa razão, decidi não me deixar levar por esse descontrole tecnológico”
Foto: Arquivo pessoal

Ao se levantar, Vânia se assustou. Não estava na estação do Centro do Rio, mas na de Niterói. Ela fora ao seu destino e voltara, sem se dar conta disso. Tamanha distração fez com que chegasse bastante atrasada ao trabalho. “Fiquei tão estressada que decidi sair de todas as redes sociais. Via isso acontecer com muitas pessoas, já havia criticado esse comportamento e acabei vivenciando uma situação parecida. Acredito que precisamos ter domínio próprio. Por essa razão, decidi não me deixar levar por esse descontrole tecnológico”, conta Vânia, explicando que, apenas recentemente, voltou a acessar as redes sociais: “Agora, com moderação”.

Já a técnica em Contabilidade S. L. A., 42 anos, perdeu as contas de quantas vezes viveu essa experiência a caminho do trabalho ou no retorno para casa. Moradora da Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro (RJ), ela trabalha na Glória, na zona sul carioca. O percurso é feito de metrô, e o celular era sua companhia nas viagens. Foi assim até o dia em que a distração com o aparelho fez com que o trajeto rumo ao lar, que leva cerca de 30 minutos, fosse feito em mais de três horas. A técnica em Contabilidade diz que, na ocasião, foi e voltou da zona norte à zona oeste – seguiu duas vezes na mesma composição de uma estação terminal até a outra. Chegou à sua casa por volta das 21h, quando o normal seria estar lá às 17h30.

Depois desse e de demais episódios semelhantes, S. L. A., que é membro de uma igreja evangélica, percebeu em si um comportamento compulsivo: “Dormia com o celular debaixo do travesseiro, mesmo quando estava carregando. Fazia as minhas refeições conferindo mensagens e, quando ia tomar banho, não me separava do aparelho”. Ela utilizava uma capa de celular à prova d’água e pendurava o telefone no pescoço enquanto estava no chuveiro. “Fiquei tão arrasada ao perceber a dependência que busquei ajuda profissional.”

“Falta de educação” – O exemplo de S. L. A. é dramático, mas não incomum. Uma estatística aponta o Brasil como o segundo país em que as pessoas passam mais tempo conectadas à web. O primeiro colocado são as Filipinas. A mesma pesquisa, realizada pela consultoria de marketing internacional We Are Social e intitulada Global digital report 2019, explicita que, em média, cada brasileiro gasta 9h29 conectado por dia. 

A psicóloga Anna Lucia Spear King informa que a intoxicação digital é o uso equivocado da tecnologia: “Há um descontrole que chega a ser falta de educação, no sentido literal da palavra”
Foto: Arquivo pessoal

No entanto, poucos sabem que tamanha dependência da rede mundial de computadores pode levar a uma “intoxicação digital”. De acordo com a psicóloga Anna Lucia Spear King, fundadora do Laboratório Delete – Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o que falta é uma educação tecnológica.“A intoxicação digital é o uso equivocado da tecnologia. As pessoas a usam no teatro, cinema, metrô, ônibus, nas salas de espera, durante palestras, no elevador, nas refeições. Há um descontrole que chega a ser falta de educação, no sentido literal da palavra”, informa a especialista, doutora e mestre em Saúde Mental pelo Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental (PROPSAM), do Instituto de Psiquiatria (IPUB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

De acordo com Anna King, em diversos casos, o usuário é dependente da tecnologia. Porém, em outros, revela más práticas desses meios. Para ela, existem dois tipos de internautas que exageram navegando na web: os que lançam mão de tais recursos para trabalho e momentos de lazer, mas acabam passando dos limites; e os que apresentam uma dependência patológica, a nomofobia. Esse termo se origina da expressão no-mobile-phobia, e, em português, significa algo como fobia de ficar sem o telefone celular

Indivíduos nomofóbicos, quando afastados de seus aparelhos por dificuldades de conexão ou falta de bateria, apresentam descontrole emocional, manifestando sintomas, como nervosismo, ansiedade, angústia e depressão. Essa desorientação pode prejudicar os relacionamentos, as atividades sociais e a vida profissional. “Quando uma pessoa chega ao Instituto Delete, passa por uma triagem, e avaliamos se ela é dependente ou apenas usa a tecnologia de maneira errada. Isso é feito mediante uma avaliação psicológica e psiquiátrica”, informa King. Se os profissionais do instituto percebem que o problema é apenas falta de educação digital, a pessoa recebe orientações, para aprender a utilizar o aparato tecnológico em sociedade sem se tornar inconveniente. “Já àqueles que apresentam a nomofobia, indicamos tratamentos e os encaminhamos para sessões de psicoterapia cognitivo-comportamental, grupos terapêuticos de manejo consciente de tecnologias e, em alguns casos, ao tratamento à base de medicação.”

Eduardo Guedes: “Se virem um motorista de ônibus dirigindo e ingerindo bebida alcóolica, as pessoas ficarão chocadas. Agora, se ele estiver olhando o celular, elas se incomodarão, mas vão aceitar melhor”
Foto: Reprodução / Canal da Leda Nagle – YouTube

Risco potencial – O pesquisador Eduardo Guedes da Conceição, um dos fundadores do Instituto Delete, acentua que é fundamental orientar a população sobre a apropriação consciente desses recursos. Mestre em Psiquiatria e atuante na área de Saúde Mental há dez anos, ele esclarece que não é tão simples identificar esse descontrole. Geralmente, busca-se ajuda somente depois que começam os conflitos na vida real, quando alguém perde o emprego, não consegue se formar ou está com problemas em seus relacionamentos. “É uma dependência silenciosa e socialmente aceita. Se virem um motorista de ônibus dirigindo e ingerindo bebida alcóolica, as pessoas ficarão chocadas. Agora, se ele estiver olhando o celular, elas se incomodarão, mas vão aceitar melhor.”

Conceição ressalta que, nos Estados Unidos, o índice de acidentes causados por uso de celulares é maior do que os ligados à embriaguez. “Um levantamento realizado pelo órgão de trânsito norte-americano aponta que a maior parte dos acidentes não ocorre por causa de bebidas alcóolicas, e sim em decorrência do text’ndrive [que significa dirigir e ler mensagens ao volante].” Ainda de acordo com o especialista, estudos mostram que essa atitude gera um risco potencial no trânsito equivalente à ingestão de cinco copos de cerveja. “Algo muito grave que precisa da atenção de todos.”

É possível imaginar que os jovens sejam mais suscetíveis à intoxicação digital, mas, segundo o psiquiatra Felipe Almeida Picon, as investigações científicas disponíveis até o momento não são conclusivas a esse respeito. Picon salienta que, em tese, qualquer pessoa pode se tornar dependente da tecnologia, pois estamos em contato crescente com a internet. Contudo, quando se leva em consideração o desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais, as faixas etárias mais baixas se encontram em maior risco. “O neurodesenvolvimento das crianças e dos adolescentes ainda está em progresso. Dessa forma, eles não têm plena capacidade de discernimento, freio e julgamento necessários para se resguardarem dos possíveis prejuízos que ocorrem com o uso demasiado da internet”, informa o psiquiatra, ressaltando que nada impede adultos e idosos de sofrer problemas graves devido ao contato excessivo com a tecnologia. 

Felipe Almeida diz que crianças e adolescentes não têm plena capacidade de discernimento, freio e julgamento necessários para se resguardarem dos possíveis prejuízos do uso demasiado da internet
Foto: Arquivo pessoal

Inúmeros prejuízos – A psicóloga Ana Paula Magosso Cavaggioni, mestre em Psicologia da Saúde e pós-graduada em Neuropsicologia Clínica e Avaliação e Intervenção Psicológica com Crianças e Adolescentes, concorda que a dependência digital atinge a todos, mas lembra que jovens e crianças são os mais vulneráveis. A especialista avalia que o número de portadores de patologias ligadas ao uso desordenado da web vem crescendo assustadoramente nos últimos anos. “As estimativas quanto à prevalência ainda são inconsistentes, mas estima-se que cerca de 10% dos usuários de internet já tenham desenvolvido a dependência digital”, informa, frisando que a compulsão pode estar associada a outras doenças, como depressão, ansiedade e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). 

Conforme Cavaggioni explica, tal malefício é capaz de ocasionar ou intensificar o isolamento social, a agressividade, a queda no rendimento profissional e a redução das habilidades sociais. O distúrbio está associado também a problemas físicos, a exemplo de dores relacionadas a longos períodos sentados em frente ao computador, obesidade e má alimentação. “Enfim, são inúmeros prejuízos. É essencial avaliar cada caso”, evidencia ela, ao ressaltar que a nomofobia pode ser tratada. “Além da psicoterapia, é fundamental a orientação à família e, eventualmente, o tratamento medicamentoso. Manter-se afastado do aparelho e expor-se às atividades sociais saudáveis são decisões igualmente importantes.”

A Pra. Mônica Terrigno Macedo de Souza esclarece: “O que um pastor pode fazer é orientar e aconselhar à luz do Evangelho, mas a decisão é individual”
Foto:  Arquivo Graça / Solmar Garcia

Entretanto, para que a pessoa consiga colocar em prática tais mudanças, é necessário o apoio de familiares e amigos. “Essa ajuda é indispensável, assim como o auxílio da Igreja. Um trabalho que, se feito em conjunto, é capaz de potencializar os resultados, acarretando  uma mudança de comportamento e dando dignidade aos envolvidos nessas práticas”, opina a Pra. Mônica Terrigno Macedo de Souza, da Igreja Internacional da Graça de Deus no Centro de Nova Iguaçu (RJ), na Baixada Fluminense. Todavia, como foi demonstrado nesta reportagem, as mudanças precisam de atitudes de quem sofre desse mal. “O que um pastor pode fazer é orientar e aconselhar à luz do Evangelho, mas a decisão é individual”, conclui a pastora. 


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

HAYO MAU NGINTIP APAAN WKWKWKWKWKWKWKWKWKKWKW FUCEK YOU Falha na conexão: php_network_getaddresses: getaddrinfo for noehmg failed: Name or service not known