DEGRAUS INTERMEDIÁRIOS
11/06/2025
Abandono da fé
12/06/2025
DEGRAUS INTERMEDIÁRIOS
11/06/2025
Abandono da fé
12/06/2025

A Igreja primitiva moldou aspectos essenciais da fé que influenciam a vida cristã até hoje

Foto: Arte de Cleber Nadalutti sobre imagem de Divulgação / Christian Publishing House Blog

Por Marcelo Santos

No alvorecer do cristianismo, dos séculos 1 ao 3, a Igreja primitiva emergiu como um movimento transformador, marcado por uma crença fervorosa e uma comunidade unida em meio à adversidade. Inspirados pelos ensinamentos de Jesus e pela ação dos apóstolos, os primeiros cristãos se reuniam em casas e tinham um estilo de vida comunitário, compartilhando até bens. Isso refletia o ideal de amor ao próximo e igualdade, conforme registram os textos de Atos dos Apóstolos. No entanto, por serem perseguidos pelo Império Romano e marginalizados, eles enfrentavam desafios intensos para manter a fé e difundir a mensagem do Evangelho. Porém, mesmo naquele ambiente marcado por ataques e tensões entre diferentes crenças, os seguidores do Mestre encontraram forças na esperança da ressurreição do Messias e na promessa de um Reino celestial, um legado de resistência e devoção que ecoa até os dias atuais.

O Rev. Eber Cocareli explica: “O que, de fato, diferencia o cristianismo do judaísmo é a interpretação teológica da obra de Cristo, não como restaurador do Reino de Israel, mas como reconciliador entre Deus e o homem por meio do sacrifício vicário”
Foto: Arquivo Graça / Solmar Garcia

Segundo o Rev. Eber Cocareli, apresentador do programa Vejam Só!, na Rede Internacional de Televisão (RIT TV), a Igreja primitiva consolidou suas bases teológicas ao interpretar o Antigo Testamento sob uma perspectiva cristológica – a partir de Jesus Cristo, estabelecendo uma teologia própria. Ele ressalta que essa leitura “consolida uma das regras mais conhecidas da hermenêutica bíblica: o Novo Testamento interpreta o Antigo Testamento, usando o Salvador como chave”. De acordo com Cocareli, os primeiros cristãos, especialmente o apóstolo Paulo, utilizavam as sinagogas como espaços para anunciar que Jesus era o Messias prometido, apontando para o cumprimento das profecias messiânicas e o propósito redentor do Filho do Altíssimo. “O que, de fato, diferencia o cristianismo do judaísmo é a interpretação teológica da obra de Cristo, não como restaurador do Reino de Israel, mas como reconciliador entre Deus e o homem por meio do sacrifício vicário”, explica o reverendo, ao ressaltar que essa compreensão já estava presente desde o sermão de Pedro, no Pentecostes (At 2.14-41).

Foto: Daniel / Gerado com IA / Adobe Stock

Cocareli aponta que a perseguição aos crentes em Jesus foi um elemento decisivo para fortalecer a fé, a organização e a missão da Igreja primitiva. Ele lembra que esse sofrimento era visto como cumprimento das palavras do Salvador: Lembrai-vos da palavra que vos disse: não é o servo maior do que o seu senhor. Se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós (Jo 15.20). “A experiência da dor não apenas reforçava a identificação dos cristãos com o Messias, mas também tornava essas pessoas alvos das promessas celestes. Assim, elas iam se desapegando dos atrativos mundanos. É o que Jesus diz em Mateus 5.11,12: Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem, e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós”, salienta o pastor, acrescentando que, diante da perseguição, os discípulos voltaram sua atenção para as promessas solenes do celeste porvir. “É significativo que tanto Paulo quanto Pedro exortem os crentes a manterem o foco no que pertence à eternidade, em vez de se concentrarem nas coisas desta vida (Fp 3.20,21; Cl 3.1,2; 1 Pe 2.11).”

O teólogo Paulo Roberto Teixeira esclarece que os primeiros servos do Senhor lidavam com a transmissão e a interpretação dos textos sagrados, considerando a diversidade cultural e linguística do Império Romano
Foto: Divulgação / SBB

Outro aspecto importante abordado por Cocareli refere-se à comunhão dos irmãos em Cristo, à divisão de bens e aos serviços comunitários. “O compartilhamento absoluto dos bens, descrito em Atos 2, ficou circunscrito aos cristãos de Jerusalém e foi temporário. O Espírito Santo, sabendo da perseguição e dispersão que viriam, promoveu um sistema emergencial de treinamento e discipulado a jato, no qual os servos podiam se reunir, orar, estudar as Escrituras em tempo integral. E deu muito certo, pois os cristãos espalhados, não sendo nenhum deles apóstolo, levaram as Boas-Novas com grande eficácia, como demonstram os episódios narrados em Atos 8, por exemplo. O sentimento de unidade permaneceu vivo em toda a Igreja, mas o sistema autossustentável não foi exportado para as comunidades cristãs fora de Jerusalém. Ao contrário, as epístolas de Paulo e Pedro exortam os cristãos a não deixarem de trabalhar e a cuidar da própria vida [Ef 6.5-9; 2 Ts 3.10-12; 1 Pe 2.18,19]”, argumenta o teólogo.

O Rev. José Roberto Nascimento elucida: “Enquanto os primeiros cristãos concordavam na fé em Jesus e na ressurreição, suas comunidades variavam em práticas e doutrinas”
Foto: Divulgação / SBB

Aspecto singular – Os primeiros servos do Senhor lidavam com a transmissão e a interpretação dos textos sagrados, considerando a diversidade cultural e linguística do Império Romano, esclarece o teólogo Paulo Roberto Teixeira. “Em sua sabedoria e soberania, Deus escolheu o grego koiné (popular) para registrar os escritos da Nova Aliança ou Novo Testamento. Isso permitia que mesmo os mais simples tivessem acesso à mensagem do Mestre e dos apóstolos na língua franca da época”, afirma ele, que é formado em Letras (Linguística, Hebraico e Português) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Teixeira lembra que o Senhor Se revelou na língua do povo, sem exigir que as pessoas aprendessem uma linguagem diferente para conhecê-Lo. “Como a mensagem deveria alcançar todos, não havia obstáculos para as igrejas que desejassem traduzir o Livro Sagrado para sua língua local. Tanto que, já no século 2, surgia a Peshitta, a Bíblia na língua siríaca”, exemplifica Paulo Teixeira, especialista também em Tradutologia e Administração Editorial pelo Summer Institute of Linguistics (SIL) da Universidade do Texas, nos Estados Unidos.

Capas da Bíblia de Estudo Igreja Primitiva, da SBB

O estudioso declara que, inicialmente, a fé cristã foi percebida no mundo greco-romano como uma seita judaica. Mas que, aos poucos, essa falsa percepção foi mudando. “O cristianismo tem como base as Escrituras do Antigo Testamento e vê em Cristo o cumprimento das antigas profecias. Isso confere à fé cristã uma proximidade com o judaísmo, ao mesmo tempo em que a distingue de forma singular”. Paulo Roberto ainda destaca: “a nova religião conseguiu, simultaneamente, defender a Lei de Moisés com ‘amar a Deus’ e também dar um passo além, rumo à graça, com o ‘amar uns aos outros’, pregado por Jesus”.

Por sua vez, o Rev. José Roberto Nascimento, secretário de Tradução e Publicações da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), ressalta que existia, naquela época, uma tensão entre unidade e diversidade, com grupos divergindo em relação às interpretações da Lei. No entanto estes compartilhavam crenças centrais, como a fé no Deus único e a Torá. Essa pluralidade, observa Nascimento, influenciou diretamente o cristianismo primitivo, o qual também se desenvolveu em meio a diferentes visões teológicas e culturais. “Enquanto os primeiros cristãos concordavam na fé em Jesus e na ressurreição, suas comunidades variavam em práticas e doutrinas, debatendo temas como a relação com a Lei de Moisés e a inclusão dos gentios”, elucida ele.

A Profª Lidice Meyer afirma que a liderança feminina desempenhou um papel importante na Igreja primitiva, assim como ao longo da história do cristianismo, mas sua atuação foi progressivamente silenciada com a institucionalização da religião
Foto: Arquivo pessoal

A propósito desse tema, a SBB lançou, em fevereiro, a Bíblia da Igreja primitiva, uma edição de estudo com análises aprofundadas da vida nos tempos bíblicos e dos primeiros intérpretes cristãos. O exemplar destaca o contexto histórico das Escrituras e traz reflexões de antigos rabinos e dos Pais da Igreja, proporcionando, assim, uma compreensão mais rica das raízes do cristianismo. “Ao examinar as crenças e experiências dos primeiros cristãos, os crentes de hoje podem obter insights [percepções] sobre doutrinas fundamentais e a vida em comunidade, levando-os a uma expressão mais autêntica da fé. O envolvimento com o contexto histórico da Igreja primitiva enriquece a fé cristã moderna ao oferecer modelos de comunidade, compreensão sobre o desenvolvimento doutrinário e aplicações práticas para os desafios contemporâneos”, afirma Nascimento.

Liderança feminina – A liderança feminina desempenhou um papel importante na Igreja primitiva, assim como ao longo da história do cristianismo. No entanto, de acordo com a Profª Lidice Meyer, pós-doutora em Antropologia e História pela Universidade de São Paulo (USP) e docente na Universidade Lusófona de Portugal, essa atuação foi progressivamente silenciada com a institucionalização da religião. Ela observa que há evidências de que as mulheres exerceram funções ministeriais e apostólicas. “O dom de apóstolo era desenvolvido por homens e mulheres que haviam conhecido Cristo pessoalmente e atuavam ativamente como evangelistas e missionários.” Meyer reforça essa afirmação ao se recordar de que o apóstolo Paulo, em Romanos 16.7, cita a apóstola Júnia como notável entre os apóstolos. “Porém, traduções posteriores alteraram seu nome para o masculino Júnias, apagando sua identidade feminina”, observa a pesquisadora. Lidice Meyer enfatiza que figuras como Maria Madalena foram reconhecidas por teólogos antigos como apóstolas e que há registros arqueológicos mostrando que mulheres exerciam função como presbíteras e episcopisas nos primeiros séculos do cristianismo.

O Pr. Márcio Fatiolli explica: “A Igreja de Jesus não muda, porque a Palavra é imutável. O que existe é uma atualização dos meios, das ferramentas, mas a comunhão e o discipulado continuam sendo a base e o instrumento de fortalecimento”
Foto: Arquivo pessoal

Meyer sublinha que essa redução da presença feminina na liderança da comunidade de fé foi um processo ligado à influência cultural e política da época. “As mulheres exerceram cargos de liderança quando as igrejas se reuniam em casas, pois eram reconhecidas como sacerdotisas do lar”. Esse quadro mudou, salienta ela, quando a igreja passou a se reunir em templos e adotou práticas judaicas que restringiam a presença feminina nos cultos. A professora aponta que, se fizermos uma leitura sem preconceitos da Bíblia, ficará evidente que as mulheres ocuparam funções essenciais na Igreja primitiva e que o cristianismo, em sua origem, não pregava a exclusão de gênero. “Hoje, as mulheres possuem as mesmas habilidades daquelas que viveram naquele tempo. Então, a Igreja Cristã que reconhece e valoriza esse potencial está muito mais próxima de suas raízes e, consequentemente, de Cristo”, defende Lidice Meyer, que acaba de lançar seu mais novo livro – Cristianismo no feminino: a presença da mulher na vida da igreja (Mundo Cristão).

Impacto na sociedade – O Pr. Márcio Fatiolli, líder regional da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Bauru (SP), lembra que a Igreja de Cristo é sustentada por pilares que atravessam os séculos e fundamentos que permanecem inalterados. “A Igreja de Jesus não muda, porque a Palavra é imutável. O que existe é uma atualização dos meios, das ferramentas, mas a comunhão e o discipulado continuam sendo a base e o instrumento de fortalecimento”, explica, acrescentando que também perdura o modelo de vida cristã fundamentado em oração, ensino, louvor e participação ativa dos fiéis. Entretanto, o ministro reconhece que a rotina moderna impôs desafios. “O tempo das pessoas, atualmente, é mais curto, as atividades são numerosas, e isso impacta na presença nos cultos”. Por isso, acredita que a Igreja precisa se modernizar a fim de atrair as pessoas, mas sem perder sua essência espiritual, investindo em seminários, palestras e ainda em louvores de qualidade.

O Pr. Leandro Bernardes ressalta: “Todos os cristãos daquela época foram ousados porque mantiveram a fé em meio à luta”
Foto: Marcelo Santos

Outro aspecto marcante da Igreja primitiva diz respeito aos desafios severos que testaram a fé e a resiliência dos primeiros cristãos: a perseguição extrema (uma realidade constante) e as heresias que ameaçavam a integridade doutrinária. Ao analisar aquele período, o Pr. Leandro Bernardes, da sede estadual da Igreja da Graça em São Paulo, na Avenida São João, no Centro da capital paulista, afirma que a coragem dos primeiros seguidores de Cristo, relatada em Atos dos Apóstolos, é uma lição fundamental para os crentes de hoje. “O sofrimento era extremo. Levados à prisão e à morte, eles não deixaram de confessar Jesus.”

Segundo Bernardes, ao traçarmos um paralelo com o cenário atual, marcado pelo secularismo e pelo pluralismo religioso, o exemplo da Igreja primitiva se torna ainda mais relevante. Ele aponta que, assim como aqueles servos precisaram se posicionar em um ambiente culturalmente diversificado, os fiéis de hoje são desafiados a defender sua fé de maneira firme e autêntica. “Todos os cristãos daquela época foram ousados porque mantiveram a fé em meio à luta”, ressalta o ministro, deixando claro que a perseverança dos cristãos primitivos continua sendo essencial para a manutenção da relevância do cristianismo e de seu impacto na sociedade contemporânea.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *