Igreja
01/10/2022Entrevista – 279
01/10/2022Geração das telas
Lidar com o uso maciço das plataformas de compartilhamento de vídeos se transformou em um desafio para os pais
Por Marcelo Santos
Duas décadas depois que a internet se popularizou no Brasil, as famílias ainda precisam lidar com as transformações trazidas por ela, principalmente no que se refere à sua influência sobre as crianças. Se, no passado, a tarefa de monitorar o que os pequenos assistiam na televisão já era difícil, com a web, o problema simplesmente aumentou. Um dos desafios vem do portal de vídeos YouTube – que, traduzido do inglês, significa algo como seu tubo ou sua TV. A proposta é ser uma espécie de televisão pessoal, na qual cada indivíduo tem acesso a uma oferta infinita de vídeos, podendo ele mesmo produzi-los.
Um dos maiores desafios das famílias é justamente controlar o que as crianças veem na rede mundial de computadores. No YouTube, embora haja algumas regras de conduta dos criadores de conteúdo (e das postagens do material audiovisual), um vídeo considerado impróprio pode atingir milhares (ou até milhões) de indivíduos antes que seja denunciado e, posteriormente, retirado do ar.
Existe ainda a questão do tempo gasto pelos pequenos na plataforma, pois os algoritmos usados vão reconhecendo os interesses dos usuários, amoldando-se
a eles e sugerindo conteúdos parecidos com o que já foi visualizado. Dessa forma, os vídeos que podem ser do interesse da garotada vão se sucedendo em uma sequência quase sem fim. Some-se a isso o fato de que o conteúdo da web não fica restrito aos aparelhos de TV inteligentes nem aos computadores pessoais (desktops): pode ser reproduzido em telas bem menores, como tablets e smartphones, dificultando ainda mais o monitoramento.
Conteúdos inapropriados – De acordo com a última pesquisa TIC Kids Online Brasil sobre o uso da internet por crianças e adolescentes, realizada em 2019 e divulgada em 2020, pelo menos, 89% da população de 9 a 17 anos é usuária da web no país, o que equivaleria a um universo de 24,3 milhões de crianças e adolescentes conectados. O celular é o principal dispositivo de acesso à rede: usado por 23 milhões de crianças e adolescentes brasileiros (95%), sendo que 58% dessa faixa etária fazem uso exclusivo do smartphone.
O levantamento da TIC Kids também mostrou um aumento no número de acessos à web por meio da televisão. O índice, que era de 32% na sondagem anterior (2018), subiu para 43%. Especialistas afirmam que o fato de os pequenos acompanharem programas em tela grande reduz os riscos de acesso a conteúdos inapropriados, pois facilita a supervisão dos adultos, mas não elimina o perigo. “A internet é uma praça pública, onde você pode encontrar tudo através de um clique: coisas boas e ruins. Quando falamos de plataformas de vídeos, em geral, o grande risco é a exposição a conteúdos inadequados”, explica Eva Cristina Dengler, gerente de programas e relações empresariais da Childhood Brasil, organização fundada em 1999 pela rainha Silvia, da Suécia, com o objetivo de proteger a infância e a adolescência, em especial atuar no enfrentamento do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes.
Eva Dengler, que trabalha há quase duas décadas na Childhood, relata que uma das atividades da organização é promover o uso ético e seguro da web, por meio do compartilhamento de informações e orientações à sociedade, sobretudo aos pais, responsáveis e às escolas, a respeito do tema. Um dos materiais disponibilizados pela organização é a cartilha Navegar com segurança e os vídeos da série Crescer sem Violência (produzidos em parceria com o canal Futura). “As crianças e os adolescentes que navegam livremente na
internet, sem orientação, acabam entrando em contato com vídeos que abordam temas, apresentam imagens ou linguagem para as quais não estão prontos. É o caso do acesso precoce à pornografia. Estima-se que a média do primeiro acesso acidental de crianças a conteúdos pornográficos seja aos nove anos”, explica.
De acordo com Dengler, a chave para garantir a proteção de crianças e adolescentes, nos mundos real e virtual, é a informação. “A Igreja, por agregar famílias e dialogar com elas, tem um papel importante como vetor dessa informação. As comunidades eclesiásticas podem compartilhar dicas e alertas sobre como o uso inadequado da internet – sem apoio ou mediação dos pais – apresenta riscos para crianças e adolescentes.”
Processo educativo – Na casa do gerente de projetos e pastor Ricardo dos Santos, 40 anos, a tarefa de monitorar a atividade on-line dos filhos Daniel, 13, e Beatriz, 10, é dividida com a esposa, a Pra. Carla Lopes, 40. Santos confessa que pedir que as crianças se afastem do celular, desliguem a TV ou parem de acessar a web é uma tarefa cansativa. “Sempre mantemos o diálogo. Observamos o que eles fazem, mas a verdade é que não conseguimos acompanhar tudo, e isso nos preocupa”, admite ele, membro da Comunidade Manancial da Promessa, na zona leste de São Paulo (SP). Ricardo dos Santos relata que, para evitar descontrole nesses acessos à rede mundial de computadores, ele e a esposa delimitaram o tempo de uso e monitoraram as atividades dos filhos. Contudo, segundo o pregador, além das orientações familiares, ter os filhos crescendo na igreja ajuda muito nesse processo educativo.
De acordo com uma investigação da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), dos cem canais mais acessados na plataforma de vídeos
YouTube, em 2016, 48 deles eram dirigidos às crianças de 0 a 12 anos. Desses, os principais canais vistos eram os que tratam de temas relacionados a games, seguidos dos programas de TV, retransmitidos pela
internet. Em terceiro lugar, os mais visitados eram os canais de propaganda de brinquedos e, por último,
os de vídeos educativos.
O isolamento social causado pela covid-19 promoveu também um aumento no uso da rede por meninos e meninas. É o que aponta um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o qual mostrou que as crianças chegaram a ficar, em média, quatro horas por dia diante das telas durante a pandemia. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que o tempo máximo seja de uma hora.
Esse cenário foi observado pela musicoterapeuta Maviana Medeiros, 37 anos, a Tia Mavi, uma das líderes do ministério infantil da sede estadual da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em São Paulo. De acordo com ela, após o período de isolamento mais rigoroso, várias crianças voltaram a frequentar a Igreja com diversas dificuldades, em especial devido à ausência de interação social. “Muitas passaram a usar mais as telas, e um dos problemas que percebemos é que elas se tornaram mais impacientes. Com os vídeos, por exemplo, as crianças aceleram até chegar onde querem. Na escolinha, no entanto, ficam com dificuldade de prestar atenção.”
Para a Tia Mavi, a solução não é simplesmente proibir o acesso aos vídeos. “É como a Bíblia ensina: Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal [Jo 17.15]. O uso da tecnologia é inevitável, mas é preciso limitá-lo. Uma criança de até dez anos deve ficar, no máximo, duas horas por dia exposta às telas”, ensina. Ademais, a musicoterapeuta orienta os pais a investir na ligação com seus filhos. “As Escrituras Sagradas dizem que Deus visitava Adão e Eva, no Éden, na viração do dia [Gn 3.8]. Precisamos também ter tempo com nossos filhos e não deixá-los expostos aos conteúdos de vídeos. Somos seres criados por Deus para nos relacionarmos uns com os outros, inclusive com nossas crianças.”
O Pr. Natanael Cardoso Negrão, 68 anos, atua há mais de quatro décadas na Aliança Pró Evangelização das Crianças (APEC), uma organização internacional fundada em 1937 nos Estados Unidos e presente no Brasil desde 1941, com o intuito de ensinar os pequeninos a crer em Jesus e obter a salvação em Cristo. Na opinião do pastor, os números que indicam o acesso maciço de crianças à internet é um sinal de alerta, especialmente pela dificuldade de monitoramento por parte dos pais e responsáveis.
Segundo Negrão, as famílias – em primeiro lugar – e as igrejas têm o dever de proteger as crianças das terríveis consequências do acesso irrestrito à web. Caso negligenciem a tarefa, frisa ele, um dos efeitos será a adultização precoce. “É tornar o coração das crianças, gradativamente, menos sensível às verdades de Deus e mais rebelde a Ele.”
O ministro destaca que, por mais difícil que seja a tarefa de monitorar o que as crianças assistem, os pais não podem, em qualquer hipótese, esquivar-se dessa responsabilidade. “Devem exercer uma vigilância constante sobre o que seus filhos veem e não permitir que fiquem horas a fio na internet”, reforça o líder, destacando que os pequenos nem sequer precisariam ter um smartphone. Para ele, deixar os filhos expostos às telas é o mesmo que colocá-las diante do dragão vermelho (citado em Apocalipse 12.1-4) para serem devorados. “Como no passado, muitos simbolicamente entregam suas criancinhas como sacrifício a Moloque”, conclui ele, referindo-se ao deus pagão adorado pelos amonitas em Canaã (Lv 20.2-5).