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Especialistas apontam caminhos para lidar com a depressão infantil, problema cada vez mais comum no Brasil e em todo o mundo
Por Ana Cleide Pacheco
Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão, principal causa de incapacidade em todo o planeta. Gente de todas as idades é afetada pela doença, inclusive as crianças. Na verdade, estas têm enchido os consultórios pediátricos em quantidades cada vez maiores.
No Brasil, um estudo realizado pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) mostrou que a covid-19 deixou três em cada dez crianças ou adolescentes (36%) com sintomas de ansiedade e depressão. A pesquisa Jovens na pandemia ouviu cerca de seis mil voluntários com idades de 5 a 17 anos, de várias localidades do país, durante 12 meses – de junho de 2020 a junho de 2021. O inquérito revelou que todas as crianças do grupo afetado pela ansiedade e pela depressão careciam de acompanhamento com psicólogos, terapeutas e, em alguns casos, psiquiatras.
De acordo com o coordenador do estudo, Guilherme Polanczyk, esses transtornos resultam da interação entre diversos fatores, principalmente genéticos e ambientais. Os primeiros, ligados aos genes, já nascem com a pessoa e se refletem na forma como ela interage com o mundo à sua volta e pela maneira como lida com os problemas. Já os fatores relativos ao ambiente estão relacionados às situações que se apresentam ao indivíduo no dia a dia, pela realidade que o rodeia. “Se temos muitos fatores genéticos prévios, ou seja, muita suscetibilidade, possivelmente uma situação estressante não tão grave poderá desencadear uma crise de ansiedade ou oscilações no humor. Já aquelas pessoas com menor risco prévio e genético precisarão passar por uma situação de estresse muito mais grave, como a morte de alguém, por exemplo, para desenvolver depressão”, esclarece.
A psicóloga e psicoterapeuta familiar sistêmica Marilda Soares Silvaacredita que a depressão infantil é vista como um assunto ainda novo devido à pouca importância dada às crianças e aos sentimentos e às emoções delas. Contudo, de acordo com especialista, é sabido que as experiências infantis são as causadoras das marcas que não podem ser apagadas ao longo da vida. Além disso, crianças e adolescentes são um termômetro balizador das situações vividas no seio familiar. “No meu entendimento, entre as principais causas da depressão infantil, estão a disfunção familiar, a ausência de um dos genitores e a violência doméstica. Por isso, acredito que a psicoterapia infantil e o aconselhamento familiar sejam fundamentais. O tratamento sistêmico familiar, com alinhamento e posicionamento das funções e papéis é extremamente necessário”, afirma Marilda, que é também pastora da Igreja Cristã Graça e Paz em Montes Claros (MG).
Sinais e sintomas – A psicóloga, neuropsicóloga e especialista em Terapia Infantil Soraya dos Santos Pinto lembra que os problemas de desordem de atenção e de comportamento, as dificuldades no processo de aprendizagem e a falta de saúde mental aumentam o risco de depressão em crianças. Segundo ela, é essencial que a família do pequeno observe eventuais mudanças de hábitos ou de comportamento, como isolamento social, aumento de choro sem justificativas, redução de rendimento escolar abrupto, perda de apetite, busca por músicas, vídeos e filmes depreciativos, entre outros. Abordar questões que envolvem a morte ou mesmo questionamentos sobre o sentido da vida também são indícios. “É fundamental que pais ou cuidadores conheçam e participem diariamente da vida da criança a fim de saber o que é um hábito praticado por ela no cotidiano e o que é novo”, orienta Soraya, citando que alguns fatores externos podem funcionar como gatilhos para a depressão nos pequeninos: ambientes onde acontecem discussões diariamente, separação dos pais, mudança de escola, de estado ou de país, morte de um dos cuidadores ou de animais de estimação são alguns exemplos.
A psiquiatra Gabriela Crenzel, membro do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), explica que a terminologia depressão infantil passou a ser aceita a partir da década de 1970. Antes disso, acreditava-se que o problema não afetava os pequenos. “Hoje, está consolidado que crianças, inclusive bebês, podem apresentar quadros depressivos”, pontua a especialista, ressaltando que, ao contrário do que acontece com adolescentes e adultos, a tristeza não é o principal sintoma da depressão na infância. “Em geral, temos de prestar atenção nas mudanças de comportamento deles: retraimento, falta ou excesso de sono, compulsão alimentar ou redução do apetite, queda de rendimento escolar, desinteresse pelas atividades de que gostava”, enumera Crenzel, citando que a irritabilidade e a tristeza também podem estar presentes. “Um choro mais sentido por motivos aparentemente pequenos e todos os tipos de sintomas relacionados à perda de vontade de fazer as coisas”, acrescenta.
A médica explica que é necessário distinguir os estados de tristeza e as oscilações afetivas normais do dia a dia dos transtornos de humor. Para isso, é importante que haja um olhar cauteloso dos pais ou dos cuidadores primários da criança e uma criteriosa avaliação especializada. “Se for um quadro persistente ou muito incapacitante, é melhor ‘errar’ para mais − oferecer ajuda e olhar tudo com seriedade. Não se pode simplesmente dizer que aquilo vai passar, que todos temos momentos difíceis ou que a situação se trata de uma bobeira.” De acordo com a especialista, caso o sofrimento da criança seja minimizado, ela poderá se fechar e viver o problema sozinha. “Para se ter um diagnóstico preciso, em primeiro lugar, é necessário prestar muita atenção na criança e oferecer-lhe apoio, mostrando que existe alguém que se preocupa com ela e que tem vontade de ajudá-la.”
Ajuda em Deus – Segundo aconfeiteira Andréia da Silva do Ó, estar atenta às mudanças de comportamento da filha Camila, hoje com 11 anos, foi fundamental para que pudesse oferecer o apoio necessário para a menina vencer a depressão. Quando tinha nove anos, Camila sofreu bullying. Na ocasião, ela foi oprimida por duas colegas, que moravam em seu condomínio e tinham um poder aquisitivo superior ao dela. “Eu percebi que algo estava acontecendo, pois ela sempre foi uma criança ativa, comunicativa, alegre e de bom coração. No entanto, de repente, ficou mais calada, com o semblante mudado.”
Quando chamou Camila para conversar, Andréia teve ciência da situação e foi falar com as garotas. “Nunca pude imaginar que romperiam a amizade com minha filha, isso a deixou muito decepcionada. A tristeza entrou no coração dela, gerando um quadro depressivo.” Por ser cristã, Andréia buscou ajuda em Deus e pediu às professoras da escola bíblica infantil que também apoiassem a menina. “Aos poucos, as coisas foram se ajustando, e minha filha voltou a ser a criança alegre de sempre. O mal da depressão saiu de nossa vida”, alegra-se a confeiteira, que junto com o esposo, Carlos Eduardo do Ó, é membro da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) na Taquara, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ).
A dona de casaAdriana Gomes Tricarico Cheble também sentiu na pele as dores de ver a filha, Clara, passando pela depressão. Membro da Igreja Metodista em Cascadura, zona norte carioca, ela conta que a jovem, estudante do 3º ano do Ensino Médio,hoje com 16 anos, passou a apresentar algumas alterações de comportamento ao chegar à fase da adolescência. “Ficou arredia, isolava-se e passou a se vestir com roupas pretas.” Além disso, a mãe observou que Clara parecia imersa em uma tristeza profunda. “Minha filha sempre foi uma criança meiga, carinhosa, obediente e muito tranquila. Aos 12 anos, começou a ficar rebelde e desobediente. Mantive minha fé em Deus e sabia que ela ficaria curada, mas vimos a necessidade de buscar uma psicóloga.”
Após procurar ajuda especializada, a garota recebeu o diagnóstico: depressão e ansiedade. “Uma vez, ela me mostrou o braço cortado. É uma tristeza ver um filho passar por isso”, conta a dona de casa, que buscou também o auxílio de um psiquiatra. Adriana relata, entretanto, que os remédios prescritos fizeram muito mal à menina, e, por isso, o tratamento foi suspenso. “Vivemos esse processo juntos, eu e meu marido [Alexandre Edson Cheble],e pedíamos ao Senhor sabedoria e paciência para lidar com a situação.” Em julho de 2022, ainda com acompanhamento psicológico e muita oração, Clara disse à mãe que precisava se aproximar mais do Criador. “Foi quando as coisas começaram a mudar. Hoje, ela é outra menina, mais leve e iluminada, para a glória de Deus. Acredito que esse tema precisa ser falado nas igrejas, tanto para os pais como para os adolescentes. Esta é uma geração muito conturbada, cheia de conflitos”, pontua.
Vivências infantis – A psicóloga clínica Márcia Pedro do Nascimento Souzalembra que, por muito tempo, as pessoas olharam para a infância como um período de alegria, inocência e despreocupação. Algo que, nem sempre, corresponde à realidade. “Nos últimos anos, houve um crescente aumento de casos de depressão, e isso se deve ao fato de os médicos estarem mais bem capacitados para identificar o transtorno”, avalia a especialista. Ela acrescenta que, além de haver um diagnóstico mais preciso e intervenções adequadas à depressão infantil, oferecidas por profissionais capacitados, hoje, já se sabe que a melhor maneira de ajudar uma criança com depressão é validar seus sentimentos. “Devemos mostrar empatia, oferecendo-lhe uma rede de apoio, principalmente na família.”
O diagnóstico preciso é um ponto enfatizado também pela psicóloga e psicanalista Caroline Perrota Oliveira, a qual alerta para dois problemas preocupantes: a patologização de vivências infantis e o excesso de medicalização dos pequenos. “Atualmente, qualquer dificuldade ou variação de comportamento que uma criança apresente, já é dado um diagnóstico e, consequentemente, um remédio”, queixa-se.
A especialista reconhece que existem muitas situações em que o medicamento pode ser necessário – e até essencial. Porém, lembra que, para chegar a tal diagnóstico e receituário, os profissionais precisam lançar mão de uma escuta cuidadosa do paciente e fazer uma avaliação criteriosa do caso, preferencialmente com uma equipe multidisciplinar. “Dar um diagnóstico para uma criança é algo difícil e exige muita responsabilidade. Temos visto, com frequência, profissionais fazendo isso após darem aos pais uma folha de papel, com algumas perguntas, para preencherem com ‘x’.” Para a psicóloga, é importante ressaltar que cada criança é única, cada família tem suas particularidades e cada caso deve ser tratado de forma individual e criteriosa. “Por isso, fica aqui um apelo para que se tome cuidado com isso”, alerta Caroline, pedindo que “as famílias não hesitem em procurar ajuda quando julgarem necessário”.