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Foto: Desenho de vectorjuice / Freepik

“Justiça” virtual

Especialistas analisam a cultura do cancelamento e suas implicações jurídicas, emocionais e espirituais

Por Ana Cleide Pacheco

O termo cancelamento está na moda, principalmente, no ambiente virtual. Mas o que é, na prática, “cancelar” alguém? Na esfera da internet, significa deixar de seguir uma pessoa – geralmente uma celebridade ou influenciador – ou alguma empresa. É uma forma de demonstrar desprezo por esses indivíduos ou companhias, que deixam de “existir” para aqueles que os descartam. Em casos extremos, pode haver até rescisão de contratos comerciais. Em geral, o cancelamento é motivado por uma fala ou ação que, por algum motivo, desagradou a alguém ou a determinado grupo. Fato é que, a cada dia, essa ação ganha mais adeptos nas redes sociais, envolvendo iniciativas que vão de interrupção do apoio a um artista, político ou uma personalidade pública a boicote a determinadas empresas e produtos.

Rechaçar uma pessoa ou empresa na web pode ser uma forma de mostrar-lhe que seu posicionamento não está de acordo com os padrões de comportamento aceitos pela sociedade, como acontece com aqueles que fazem postagens racistas ou xenofóbicas. Em outras situações, tal cancelamento pode partir apenas de um grupo de insatisfeitos. É o que ocorre se uma personalidade popular demonstra apoio a pautas conservadoras, como a luta contra o aborto ou em oposição à ideologia de gênero. Nesses casos, poderá ser cancelado por integrantes de setores liberais e/ou (ditos) progressistas da sociedade que são favoráveis a essas práticas.

Algumas vezes, o cancelamento é temporário: só dura até que o cancelado faça uma retratação pública. De qualquer forma, o ato de cancelar não está circunscrito apenas a questões que pautam discussões importantes na atualidade. A punição aplicada nas redes pode decorrer de gestos tão banais quanto falar mal de alguém que tenha um número considerável de fãs. Em resumo, a cultura do cancelamento transformou a internet em uma rede de justiceiros virtuais em que todos julgam – e condenam – aqueles de quem discordam, muitas vezes, com base em simples divergências de opinião.

O cantor e compositor canadense Justin Bieber dedicou uma música, Afraid to say (medo de dizer, em tradução livre), para expressar seu descontentamento diante da prática do cancelamento – Foto: Reprodução / Tik Tok

Não por acaso, esse movimento tem sido alvo de inúmeras críticas. O cantor e compositor canadense Justin Bieber, por exemplo, dedicou a esse tema uma canção de seu primeiro disco gospel, Freedom (Liberdade), lançado recentemente. Na letra de Afraid to say (medo de dizer, em tradução livre), ele expressa seu descontentamento diante da prática do cancelamento: O que fizemos com a sociedade quando todo mundo está sendo cancelado? Não poderia haver espaço para a maturidade? Porque descartá-las não é a resposta. Em outra parte da música, Bieber informa que cancelar é contrário à postura do próprio Deus, que é justiça, mas, também, é misericórdia e amor. Ele está conosco em nossa dor. Está conosco em nossa luta. […] Está conosco o tempo todo. Ele nunca nos descarta.

Limites legais – A jornalista Issaaf Karhawi, 32 anos, pondera que, quando se pensa nesse assunto, a primeira reação é dizer que é necessário suprimir a cultura do cancelamento. “Em certa medida, essa afirmação não está de todo errada, uma vez que a forma como se dá o processo, em alguns casos, é equivocada e até violenta”, analisa ela, doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora em Comunicação Digital na Universidade de São Paulo (USP). Ela ainda avalia que há casos em que os argumentos em defesa do cancelamento de alguém podem até ser legítimos. “Pessoas que são canceladas, de modo geral, vivem isso por terem proferido falas ou tido atitudes preconceituosas contra outras. Então, nessas situações, o ato vem como uma sinalização de que essa postura não será mais aceita.” Contudo, em contrapartida, a especialista ressalta que, para que possam voltar ao convívio pacífico na rede mundial de computadores, os cancelados precisam se arrepender do malfeito. “Esse indivíduo é chamado à reflexão e, se necessário, pode se desculpar, reposicionar-se, pensar em novas formas de conteúdo ou de conduta. Tudo é uma questão de responsabilidade na internet ou fora dela.”

A jornalista Issaaf Karhawi pondera: “Pessoas que são canceladas, de modo geral, vivem isso por terem proferido falas ou tido atitudes preconceituosas contra outras” – Foto: Arquivo pessoal

Entretanto, é importante salientar que o cancelamento também pode ter implicações legais. “Juridicamente, cancelar, assim como o cyberbullying, não é considerado crime. No entanto, qualquer indivíduo que, por ação ou omissão, causar dano a outro, fica obrigado a reparar todas as consequências e repercussões desse dano”, explica a advogada Ivanice Cardoso Teixeira de Lima, 45 anos, especialista em Direito de Imagem e Segurança Digital. Em outras palavras, cancelar não é crime, mas difamar ou injuriar o cancelado, sim. “Posso dizer: ‘Não concordo com você. Quer rever seu posicionamento?’. Essa é uma livre manifestação de pensamento, expressa de forma legítima e politicamente positiva. Outra coisa é dizer: ‘Não concordo com você’ e xingar a pessoa. Nesse caso, ultrapassei o limite da legalidade.” [Leia, no final desta reportagem, o quadro Sem direito à defesa]

Advogada Ivanice Cardoso Teixeira de Lima: “Qualquer indivíduo que, por ação ou omissão, causar dano a outro, fica obrigado a reparar todas as consequências e repercussões desse dano” – Foto: Arquivo pessoal

A advogada Cristina Sleiman, especialista em Direito Digital, concorda com Ivanice Lima. “A internet e as redes socais facilitaram a prática de cancelar os outros. Essas ações podem envolver atos ilícitos e todo tipo de dano, ainda que moral, os quais acabam prejudicando as pessoas. É importante entender que temos nossa opinião, mas precisamos saber como nos posicionar, sempre com respeito e responsabilidade.” Sleiman destaca que a atitude errada de alguém não justifica o erro de outrem. “O fato de um indivíduo ter feito alguma coisa que, socialmente, consideramos negativa, não nos dá o poder de extrapolar nosso direito e invadir o dele.”

A advogada Cristina Sleiman explica: “É importante entender que temos nossa opinião, mas precisamos saber como nos posicionar, sempre com respeito e responsabilidade” – Foto: Arquivo pessoal

Graves consequências – A cultura do cancelamento também pode redundar em prejuízos à saúde mental tanto de quem pratica o ato quanto de sua vítima. Aquele que exclui corre o risco de se tornar crítico demais, o que, definitivamente, não é saudável. Porém, sem dúvida, o sujeito cancelado é o que mais sente os impactos de todo o processo. “O excluído pode sofrer traumas psicológicos graves por causa dos julgamentos”, alerta a psicóloga Alessandra Augusto, 50anos. “Levando-se em consideração que o ser humano vive em busca de validação, é automático que procure isso em suas relações interpessoais. Então, quando ocorre um cancelamento, acontece a perda dessa validação, acarretando muitas outras perdas.”

A psicóloga Alessandra Augusto alerta: “O excluído pode sofrer traumas psicológicos graves por causa dos julgamentos” – Foto: Divulgação

Ainda de acordo com a especialista, na cultura do cancelamento, na qual influenciadores e famosos são os mais atingidos, pode ser necessário escolher entre ter fama ou relações saudáveis. “Assim, costumo dizer que o interessante não é agradar ao outro, e sim recalcular a rota em busca de um equilíbrio nos relacionamentos. Isso gerará uma vida pessoal e social mais sadia”, avalia Alessandra.

Mas, embora tenha ganhado muito destaque nesses últimos anos com o advento das redes sociais e dos influenciadores digitais, o fato é que esse fenômeno existe há bastante tempo. Afinal, indivíduos sempre foram abandonados ou excluídos de seu grupo de convívio. No passado, uma mulher desquitada não seria mais bem-vinda no círculo social que frequentava quando casada.

O Rev. Gustavo Nunes Ribeiro, 36 anos, da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia (GO), ressalta que o cancelamento já era praticado nos tempos de Jesus. “O evangelho de João narra a história de uma mulher que foi flagrada em adultério [Jo 8.1-11]. Ela é arrastada até o templo, onde o Mestre estava cercado por uma multidão. Eles a colocam de pé no meio de todos. Consegue imaginar a vergonha e humilhação pública que aquela dona sofreu?”, diz o pastor. Segundo Ribeiro, apesar de aqueles homens terem indagado Jesus, para terem do que O acusar, a mulher estava sendo submetida a um “tribunal” totalmente ilegal. “Eles não tinham autoridade para fazer aquilo. Portanto, podemos, infelizmente, perceber que o cancelamento é praticado há anos.”

Rev. Gustavo Nunes Ribeiro lembra a história da mulher flagrada em adultério (João 8.1-11): “Podemos, infelizmente, perceber que o cancelamento é praticado há anos” – Foto: Arquivo pessoal

O Pr. Gustavo Ribeiro faz questão de dizer, entretanto, que a situação atual é bem diferente porque a polarização está cada vez mais presente entre as pessoas. “Dessa forma, discordar de ideias é considerado uma atitude grave, e quem discorda é visto como um inimigo. Assim, procuram-se meios para cancelá-lo”, analisa ele, apontando que a resposta para resolver esse problema é a mensagem da graça e do favor superabundante de Deus. “Creio que a solução está em Cristo, que pagou o preço por nossos pecados e que nos dá esperança de perdão, de alegria plena e de mudança. Ele nos deixou o Consolador, capaz de nos receber em Seus braços, trazendo transformação e restauração.”

Ribeiro adverte que a história recente vem mostrando as graves consequências da cultura do cancelamento. “Pessoas têm tirado a própria vida por não conseguirem lidar com a repercussão de suas atitudes e seus pensamentos. Vejo que a Igreja tem papel fundamental nessas situações, com o intuito de acolher, corrigir – se necessário – e caminhar com essas pessoas. Para isso, fomos chamados. Que consigamos cumprir nosso papel, com responsabilidade, fé e amor”, conclama.

Pr. Gilson Santos: “Creio que ‘cancelar’ alguém não seja a melhor maneira de expor as nossas opiniões. Essa atitude não dá ao próximo a chance de se defender ou justificar seu comportamento” – Foto: Arquivo Graça / Marcelo Nejm

O Pr. Gilson Santos, 36 anos, da Igreja Internacional da Graças de Deus (IIGD) em São José dos Pinhais (PR), concorda com Gustavo Ribeiro. Na opinião de Santos, o cancelamento é uma maneira rude de discordar do que outras pessoas dizem ou fazem. O pregador assinala que dar likes ou dislikes são expressões de apoio (ou não) a uma série de ideias. Contudo, frisa que essas ideias vêm de pessoas, e, por isso, é preciso haver cuidado. “Creio que ‘cancelar’ alguém não seja a melhor maneira de expor as nossas opiniões. Essa atitude não dá ao próximo a chance de se defender ou justificar seu comportamento. Enquanto cristãos, precisamos ser sábios em nossa maneira de agir, como o apóstolo Paulo orienta em Colossenses 4.6: A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais como vos convém responder a cada um .” 

Sem direito à defesa

O artigo A cultura do cancelamento, seus efeitos sociais negativos e injustiças, escrito pelo advogado João Pedro Gindro Braz, com a colaboração dos estudantes de Direito Breno da Silva Chiari, Guilherme Araújo Lopes e Hiram Godoy Santos, assevera que uma das diversas características da cultura do cancelamento é justamente o fato de que não existe democracia nos “julgamentos” virtuais, tampouco os direitos de se defender das acusações. Os autores do texto lembram, porém, que os grupos favoráveis ao ato de cancelar, curiosamente, defendem a tese de que se trata do “ato de manifestar o livre direito da liberdade de expressão”.

No entanto, os articulistas mostram que muitas pessoas estão fazendo mau uso de suas liberdades. Citando a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) contrária à cultura do cancelamento, inclusive por seu caráter antidemocrático, os autores lembram que o “tribunal da internet” não possibilita a apresentação do contraditório aos que – nas redes – são acusados de malfeitos. O texto diz ainda que é de extrema importância respeitar e usufruir a nossa democracia, dar créditos ao livre direito de pensamento de outrem, promover debates de ideias, sempre respeitando os direitos do próximo, deixando que a justiça trabalhe e que somente ela seja capaz de punir os transgressores. (Fonte: Toledo Prudente Centro Universitário)


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