PRODUÇÃO MEDÍOCRE
14/11/2024GERAÇÃO VIOLENTA
14/11/2024REDE DE PROTEÇÃO
O abuso infantil é uma prática criminosa que deve ser enfrentada pela sociedade e pela Igreja na prevenção e no acolhimento às vítimas
Por Evandro Teixeira
No Brasil, o abuso infantil é um problema devastador que afeta milhares de crianças e adolescentes. Apesar dos avanços nas políticas públicas e no sistema de proteção a essa faixa etária, os números continuam alarmantes: até maio de 2024, foram registradas 11.692 denúncias de violência sexual contra menores de idade, de acordo com o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH).
As últimas décadas foram marcadas por progressos legislativos a respeito do assunto. A Constituição Federal de 1988 assegurava, de modo genérico, a proteção à família por parte da sociedade e do Estado. Entretanto, faltavam a criação e a regulamentação de leis que garantissem o cumprimento do preceito constitucional. Desse modo, legisladores, com auxílio de juristas e especialistas de diversas áreas acadêmicas, foram delineando um amplo arcabouço legal capaz de proteger as crianças e os adolescentes de qualquer forma de abuso, garantindo-lhes direitos e proporcionando-lhes segurança e bem-estar. Assim foi criada, em 1990, a Lei 8.069, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Embora a questão sexual tenha mais repercussão, o ECA também prevê punições contra outras práticas abusivas, como a violência física e a intimidação psicológica, e estabelece medidas protetivas e políticas públicas para a promoção desses direitos.
Passados 34 anos, a sanção da Lei 14.811/2024 reforçou as penalidades previstas no ECA contra o abuso infantil, como a inclusão do bullying e do cyberbullying no Código Penal Brasileiro e a transformação em hediondos dos crimes de sequestro e de indução à automutilação. A nova legislação também instituiu medidas contra atos de violência em estabelecimentos educacionais, determinou a criação da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente e prevê pena de reclusão de dois a quatro anos a quem, de forma dolosa, não comunicar à autoridade pública o desaparecimento de uma criança ou um adolescente.
Ambiente de manipulação – Diante da escalada de casos de abuso infantil, a reportagem de Graça/Show da Fé ouviu a opinião de especialistas e pastores sobre o tema, a fim de saber o que o Estado tem feito para reduzir esse tipo de violência. Para o advogado e professor Rafael Durand Couto, alguns fatores dificultam o combate a essa prática criminosa: a falta de preparo dos agentes responsáveis pelas investigações, a lentidão dos processos judiciais e a baixa taxa de condenação – o que transmite a ideia de impunidade. “Sem contar que o autor do crime é quase sempre uma pessoa próxima da vítima, na maioria das vezes, tido como alguém de confiança”, observa ele, acrescentando que essa proximidade gera um ambiente de manipulação e medo, dificultando a identificação e a formalização da denúncia. “Muitas vezes, os menores se sentem culpados ou envergonhados, acreditando que a violência sofrida é, de alguma forma, responsabilidade deles.”
Dados do Atlas da Violência 2024, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revelam altos índices de abuso sexual envolvendo meninas de 10 a 14 anos, o que corresponde a quase metade (49,6%) dos casos de agressão nessa faixa etária. “Para mudar esse quadro, é necessário um conjunto de ações integradas que envolvam sistema judiciário, educação, saúde e assistência social”, sugere Rafael Couto.
Na opinião da cientista social Tânia Foster, a violência sexual contra crianças e adolescentes é um problema que deve ser combatido na raiz. De acordo com ela, não basta punir os criminosos, é necessário enfrentar, com uma abordagem integrada, as desigualdades e injustiças sociais. “Ao tratar desse tema, devemos considerar não só os aspectos individuais dos agressores, como distúrbios psicológicos, mas também as questões estruturais que permitem a perpetuação desse tipo de ação violenta”, avalia. A especialista ressalta que, mesmo sem intenção, a sociedade contribui para a formação de comportamentos agressivos por meio da cultura de violência. “A mídia, a política e as instituições têm papéis significativos na propagação de discursos e práticas abusivas”, lembra Foster, assinalando que a violência é um fenômeno complexo e multifacetado, influenciado por inúmeros fatores. “É fundamental haver um empenho coletivo e integrado de diversas esferas da sociedade, incluindo a Igreja, no enfrentamento desse grave problema”, enfatiza.
Garantia de direitos – Algumas instituições sociais, como a organização não governamental Visão Mundial, fundada em 1975, vem dedicando tempo e esforço em projetos que visam proteger crianças e adolescentes. Ao longo dos anos, a ONG tem alcançado resultados positivos por meio do fortalecimento de sua rede de proteção, da conscientização da sociedade sobre o tema e da ampliação de programas que garantam os direitos desse público no Brasil e em diversos países.
A assessora de proteção e salvaguarda da instituição, Daiane Lacerda Lima, observa que, além das organizações, as igrejas também devem proteger os pequenos. A Visão Mundial tem a plataforma Juntos Pelas Crianças, a qual desenvolve metodologias com intuito de preparar comunidades cristãs para criarem sistemas de proteção às crianças, estabelecendo uma parceria com os ministérios infantis. “A partir dos treinamentos e da aproximação com agentes que atuam nesse setor, podemos capacitar as igrejas a fim de que identifiquem e tratem adequadamente possíveis casos de abuso.”
Ao concordar que as comunidades de fé são importantes para a proteção à infância e à adolescência, a Pra. Flávia Luz Vaz, da Missão Evangélica Praia da Costa, em Vila Velha (ES), acredita que é primordial desenvolver um programa de conscientização sobre as necessidades e os direitos desses menores por meio de palestras. A ministra relata que a igreja na qual congrega disponibiliza cursos voltados para a família e promove projetos de auxílio a crianças e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade. Segundo Flávia, devido à ausência de um cuidado familiar, esses menores podem se tornar mais vulneráveis a diversos tipos de abuso, inclusive os sexuais. “A fim de alertá-los acerca desse tipo de violência, uma das orientações que damos é sobre o limite do toque no corpo”, exemplifica, ressaltando que a atenção da igreja está prioritariamente voltada às vítimas. No entanto, ela menciona que é preciso investigar e analisar quem são os agressores – em geral, reincidentes nas práticas criminosas acobertadas por omissão de familiares. Na opinião da pastora, esses criminosos devem ser denunciados, processados, julgados e condenados, conforme o Código Penal e o Código de Processo Penal, mas salienta que não deve ser negada ajuda àqueles que a buscarem. “A depender do caso, os agressores devem ter, assim como as vítimas, um acompanhamento psicológico e espiritual se verdadeiramente desejarem uma mudança de comportamento.”
Acolhimento e amor – Na visão do Pr. Edson Tadeu Ferreira da Silva Júnior, líder regional da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Piabetá, no município de Magé (RJ), as consequências do abuso infantil devem ser tratadas necessariamente em família e na igreja, reafirmando a importância da conscientização acerca do problema e do bom atendimento às vítimas. “A criança que sofre violência deve ser acolhida com muito amor. Desse modo, aos poucos, aprenderá a superar o trauma sofrido”, defende.
Por sua vez, o Pr. Eric Costa Dias, líder estadual da Igreja da Graça em Roraima (RR), frisa que pelo fato de o suspeito ser, em geral, alguém próximo do círculo familiar, como um parente, essa prática criminosa tem o poder de abalar toda a estrutura do lar. Por isso, ele enfatiza a necessidade de cuidar emocionalmente das pessoas ligadas direta e indiretamente à vítima.
Para a educadora Patrícia dos Santos Candal de Moraes, membro da Igreja Batista Alegria, em Vitória (ES), a vítima precisa ser apoiada de todas as maneiras possíveis após a violência e, oportunamente, ainda que seja uma situação delicada, conversar sobre o ocorrido. “Em se tratando de crianças e adolescentes, convém encontrar uma abordagem que favoreça o entendimento deles.”
Segundo a especialista, um dos sentimentos que mais marcam os menores é o medo, o qual o agressor tende a usar em favor dele, fazendo com que as vítimas acabem escondendo o abuso sofrido, podendo, inclusive, desenvolver outros bloqueios. “Pelo efeito duradouro, esse sentimento deve ser tratado com a ajuda de um profissional. Se necessário, deve-se recorrer a terapias específicas”, avalia Patrícia Moraes, defendendo a capacitação e participação ativa das equipes de escolas bíblicas para reconhecerem sinais de abusos, identificarem mudanças de comportamento suspeitas e agirem diante de possíveis ocorrências. “Precisamos criar um ambiente seguro para as nossas crianças”, diz ela, reforçando que a denúncia às autoridades pelo Disque 100 é fundamental. Por esse número, que é gratuito e funciona 24 horas todos os dias, é possível encaminhar as queixas – que podem ser anônimas – aos órgãos competentes da cidade onde reside a criança ou o adolescente.