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Foto: Divulgação – United Bible Societies / China

Perseguição implacável

Em meio a frequentes investidas contra cristãos e igrejas, governo chinês pretende reescrever o Texto Bíblico

Por Evandro Teixeira

Em outubro de 1949, nascia a República Popular da China sob o controle do Partido Comunista. Esse foi o resultado da revolução comandada por Mao Tsé-Tung (1893-1976), após anos de guerra civil. Adepto da filosofia marxista, ele se tornou presidente do país, estabeleceu o socialismo como forma de governo e declarou que a China seria, a partir daquele momento, um Estado oficialmente ateu. Em 1966, com a  Revolução Cultural, Mao Tsé-Tung tornou o governo ainda mais hostil a toda e qualquer manifestação de fé. Muitos pastores passaram anos na cadeia, e outros tantos morreram no cárcere.

Mao Tsé-Tung (1893-1976): em 1949, assumiu o controle do Partido Comunista e se tornou presidente da China, estabelecendo o socialismo como forma de governo
Foto: Government of the People’s Republic of China / Wikimedia

As igrejas chinesas só começariam a ver uma luz no fim do túnel dez anos depois, com a morte do ditador em 1976. Na ocasião, o Partido Comunista Chinês (PCC) fez algumas concessões aos cidadãos, e, pouco a pouco, a religião voltou a ser parte da vida dos chineses. Pelas novas regras, as igrejas deveriam ser registradas e seguir as diretrizes do PCC. Algumas congregações aceitaram tais imposições, especialmente aquelas que tinham templos nos grandes centros urbanos. Porém, o cristianismo, principalmente o protestante, havia crescido muito nas áreas rurais, longe dos olhos das autoridades, devido às igrejas domésticas clandestinas.

O atual presidente da China, Xi Jinping, assumiu o poder em 2013 e tornou as igrejas cristãs um dos principais alvos da repressão do Estado
Foto: Alan Santos / PR

Nos anos de 1990 e 2000, com a maior abertura econômica do país, muitos desses cristãos do campo, em busca de oportunidades de trabalho, migraram para as grandes cidades, onde se formaram diversas igrejas não registradas. Estas chegavam a reunir milhares de pessoas, mas não havia, por parte do PCC, interesse em reprimir suas atividades.

Contudo, com a ascensão ao poder do atual presidente, Xi Jinping, em 2013, as igrejas cristãs voltaram a ser um dos principais alvos da repressão do Estado. Centenas de pastores e cristãos chineses já foram presos, e templos foram demolidos ou desapropriados desde então. Há, ainda, um empenho de nacionalizar a religião cristã, moldá-la ao que as autoridades entendem ser a cultura chinesa. [Leia, no final desta reportagem, o quadro Estratégia ditatorial]

O reitor da Agrade, Rafael Mariano dos Santos, entende que a versão reeditada das Escrituras gerará um enorme desafio para as igrejas: “Essas pessoas buscam ofuscar a perfeição de Seu sacrifício na cruz, pois a Palavra diz que nEle não havia pecado”
Foto: Arquivo pessoal

Dentro dessa perspectiva, o governo de Pequim deu início a uma iniciativa inédita em toda a História: reescrever a Bíblia de modo que ela atenda aos interesses do Partido Comunista. A proposta teve início em 2019, e, com ela, o regime de Jinping pretende que todos os Livros Sagrados impressos e digitais que circularem no país reflitam a filosofia marxista, com ideias do confucionismo e do budismo, religiões tradicionais chinesas. O processo de reformulação da Bíblia, segundo estimativas do Partido Comunista Chinês, levará cerca de dez anos para ser concluído.

Amissão The Voice of the Martyrs (A Voz dos Mártires) teve acesso a um trecho da versão reescrita, inserida em um livro didático para alunos do Ensino Médio, lançada em setembro de 2020. Trata-se de uma passagem registrada em um dos evangelhos, na qual é narrado o episódio da mulher apanhada em adultério. Na adaptação chinesa, depois que os acusadores vão embora, o próprio Jesus apedreja a mulher, dizendo: Eu também sou um pecador. Indo de encontro ao que está escrito na Palavra de Deus: E, endireitando-se Jesus e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais (João 8.10,11).

O Pr. Silas Marchiori Tostes, presidente da Missão Antioquia, afirma que o resultado desse projeto não poderia ser chamado de Bíblia: “Uma possível Bíblia cheia de distorções será ridicularizada pelos especialistas em tradução”
Foto: Arquivo pessoal

A denúncia da organização A Voz dos Mártires foi corroborada por Mike Pompeo, ex-diretor da CIA (Agência Central de Inteligência norte-americana) e ex-secretário de Estado americano na gestão do presidente Donald Trump. O Partido Comunista está tentando reescrever a Bíblia para adaptá-la ao regime que vigora na China. Isso é inaceitável, afirmou Pompeo, lembrando que o autoritarismo quase sempre segue a linha de repressão religiosa. Tirar a religião da praça pública leva à opressão e a regimes autoritários. Por isso, fizemos desse tema uma prioridade.

Bíblia ridicularizada – Oreitor da Academia Teológica da Graça de Deus (Agrade), Rafael Mariano dos Santos, entende que a versão reeditada das Escrituras gerará um enorme desafio para as igrejas. “Ao colocarem essa declaração nos lábios de Cristo, essas pessoas buscam ofuscar a perfeição de Seu sacrifício na cruz, pois a Palavra diz que nEle não havia pecado”, defende Rafael, fazendo menção ao texto de Hebreus 4.15 (Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado).

Foto: Jason Cooper / Unsplash

Para o Pr. Silas Marchiori Tostes, presidente da Missão Antioquia, o resultado desse projeto não poderia ser chamado de Bíblia. Segundo ele, por definição, as Escrituras Sagradas são uma tradução dos manuscritos originais. Trata-se de um trabalho que deve ser feito por um grupo de teólogos e entendidos nas línguas bíblicas (hebraico, grego e aramaico). “Uma possível Bíblia cheia de distorções será ridicularizada pelos especialistas em tradução”, opina Tostes, advertindo que, dada a força do PCC, dificilmente alguém conseguirá reverter esse processo, a não ser que o próprio governo desista desse projeto de falseamento da Palavra.

Formado em Teologia, mestre em Ciência da Religião e membro da Igreja Batista Água Branca, na zona oeste de São Paulo (SP), o pastor e missionário Jeferson Firmino das Chagas conhece bem a realidade dos cristãos na China, país em que serviu na obra de Deus por dez anos. Para ele, embora o regime de Pequim tente demonstrar apoio à liberdade de crença, como consta no artigo 36 da Constituição Chinesa, existem condições pré-estabelecidas para qualquer grupo religioso atuar naquele território, sendo a principal delas o controle sobre todas as atividades cristãs. Segundo Chagas, essa é a forma de evitar quaisquer ameaças ao poder do Partido Comunista e do atual presidente.

O pastor e missionário Jeferson Firmino das Chagas serviu na obra de Deus na China por dez anos e diz que, nas igrejas oficiais, controladas pelo governo, “os cultos são filmados”
Foto: Arquivo pessoal

O missionário informa que, nas igrejas oficiais, controladas pelo governo, os líderes são obrigados a submeter suas mensagens e liturgias a uma fiscalização prévia do Partido Comunista antes das celebrações públicas. “Além disso, os cultos são filmados.” De acordo com o pregador, as denominações domésticas são consideradas grupos clandestinos que se recusam a cumprir as leis do regime, e, por isso, são perseguidas. “Elas formam a maior parte das congregações chinesas.”

Na visão de Chagas, por pregar o senhorio de Jesus, o cristianismo é considerado ameaçador ao regime chinês. Por esse motivo, a perseguição aos crentes tem um caráter mais político do que religioso, uma vez que a fé cristã retiraria a importância do presidente da China, figura central e de maior destaque perante aquele povo.

“Tudo no país gira em torno de Xi Jinping. Nenhum líder pode vir à sua frente. Além disso, a mensagem de paz e amor de Cristo se contrapõe ao pensamento dele.”

O pastor e missionário Luiz Renato Maia salienta: “Fornecer material, recursos e treinamentos é um papel importante que as missões exercem em países como a China”
Foto: Arquivo pessoal

Apoio estrangeiro – Não sem motivos, a circulação de bíblias na China sempre enfrentou muitas dificuldades e resistências. O governo de Pequim autoriza a publicação de um número limitado de exemplares do Texto Sagrado, mas leva em consideração apenas os membros das igrejas oficiais. Dessa forma, a quantidade de bíblias que circula lá é muito menor do que a de cristãos. O regime liderado por Xi Jinping também tem controlado de perto o acesso dos chineses às Escrituras pelos meios digitais: apenas alguns sites e aplicativos estão autorizados a veicularem o Texto Sagrado.

No entendimento do pastor e missionário Luiz Renato Maia, presidente da Missão em Apoio à Igreja Sofredora (MAIS), como as congregações chinesas sempre sofreram em razão da escassez de bíblias, o problema tende a aumentar com a possibilidade de haver produção de exemplares com textos alterados. No entanto, o missionário garante que, mesmo em meio a esse cenário hostil, as igrejas domésticas têm crescido. E, a fim de driblar essa iniciativa do Partido Comunista, intensificarão os esforços de compartilhamento do material bíblico original. Para que essa distribuição aconteça, o apoio das organizações missionárias estrangeiras será fundamental. “Fornecer material, recursos e treinamentos é um papel importante que as missões exercem em países como a China.”

Foto: Wu Yi / Unsplash

Em meio a esses desafios, o reitor da Agrade recorda os esforços de homens de Deus, como os pioneiros Hudson Taylor (1832-1905) e Pastor Hsi (1836-1896), servos que enfrentaram inúmeras adversidades e opressões para pregar o Evangelho em solo chinês. “Nada foi capaz de impedi-los”, lembra o diretor, o qual acredita que, da mesma maneira, toda perseguição de Xi Jinping e sua estratégia diabólica de reescrever a Bíblia entrarão para a História apenas como “mais um episódio vencido pela Igreja Chinesa”.

Estratégia ditatorial

A iniciativa de modificação do Texto Bíblico faz parte da política de nacionalização da religião, que está sendo implantada em todo o território chinês. A Constituição chinesa diz que o país é ateu, mas, como todos os governos totalitários já descobriram, os povos tendem a ser religiosos. Portanto, sob o pretexto de preservar a identidade cultural da China, o Partido Comunista quer usar a religião como instrumento para alcançar seus objetivos.

A estratégia de Xi Jinping é controlar a cultura e, por meio dela, a sociedade e o pensamento. Crenças que promovam ideias consideradas ameaçadoras, como a fé cristã, que propõe a paz e a sujeição a Deus acima da obediência ao Estado, desafiam os métodos de controle adotados pelo presidente. Por isso, devem ser monitoradas de perto e, em muitos casos, duramente reprimidas. Na China, estão em vigor atualmente 218 regulamentos relacionados à religião, os quais têm sido rigorosamente aplicados pelas autoridades. (Fonte: Missão Portas Abertas)

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