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Foto: Tomsickova / Adobe Stock

Amor de Pai

Líderes e pastores discutem como a Igreja deve enfrentar a crise de paternidade que assola o país

Por Ana Cleide Pacheco

Todos os anos, no Brasil, milhares de crianças são registradas sem o nome do pai. De acordo com informações da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ARPEN), somente entre janeiro e abril de 2023 60.295 bebês receberam apenas o nome da mãe na certidão – 6,8% dos 874.166 nascimentos registrados nos cartórios nos primeiros quatro meses deste ano. O levantamento apontou que a região Sudeste é a que apresenta o maior número de crianças com pai ausente: mais de 20 mil. Só o estado de São Paulo responde por 10.241 recém-nascidos sem o nome paterno.

Para esses pequenos, quase invariavelmente, a lacuna deixada pela falta da figura paterna não se restringe ao registro, é algo que os acompanha vida afora. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código Civil garantirem o direito ao reconhecimento forçado de paternidade, por meio de decisão judicial e exame de DNA, a inclusão de um nome na certidão de nascimento e o eventual pagamento de pensão alimentícia não significam a criação de genuínos vínculos parentais.

Imagens de divulgação do documentário The Fatherless Epidemic (A epidemia da falta de paternidade, em tradução livre)
Foto: Divulgação

No documentário The Fatherless Epidemic (em tradução livre, A epidemia da falta de paternidade), o produtor e diretor norte-americano Eric Swithin afirma que a falta de referência paterna pode acarretar consequências graves para a vida das crianças, entre elas, o desenvolvimento de comportamentos inadequados. No material, disponível em inglês no YouTube, ele conta parte de sua trajetória: um pai praticamente ausente, alcoólatra e pouco afetuoso.

O diretor revela ainda as agruras da convivência com os diversos parceiros que passaram pela vida da mãe. Na adolescência, Swithin se envolveu com drogas e brigas de gangues e quase morreu em uma delas. Mesmo assim, alistou-se no exército e, mais tarde, tornou-se o primeiro homem de sua família a obter um diploma de curso superior e a ter a própria empresa. Entretanto, a ferida aberta pela ausência paterna continuaria a provocar muita dor emocional, até ele conhecer Jesus e experimentar o amor do Pai celestial.

A partir dessa experiência com Cristo, Swithin criou a associação The Alliance for Ending the Fatherless Epidemic (em tradução livre, A Aliança para acabar com a epidemia da falta de paternidade), um ministério que ajuda órfãos a encontrar amparo e cuidado nos braços do Senhor e de homens que possam atuar como mentores, substituindo, de alguma forma, a figura paterna. O papel mais importante de um pai dentro de casa, em minha opinião, é o senso de identidade que ele transmite para o lar. Você sabe quem é a autoridade ali e o papel de cada um. Então, se um menino não tem um pai por perto, ele não sabe quem é e fica com raiva de outros meninos. Já as garotas estão constantemente procurando por amor e aceitação nos braços de qualquer um, declara Eric Swithin, no documentário.

A empresária Michele Ferrão cresceu sem o amor e o afeto do pai. “Jesus me curou e preencheu aquele vácuo que havia em mim. O amor do Pai celestial nos conduz à cura”
Foto: Arquivo pessoal

Amor incondicional A empresária Michele Ferrão, 44 anos, passou por experiência semelhante à vivida pelo produtor e diretor norte-americano. Embora fosse registrada com o nome do pai, ela cresceu sem o amor e o afeto dele. Sentindo-se desprotegida e desamparada, buscava preencher aquele vazio com relacionamentos amorosos.

Apesar de nunca ter usado drogas, Michele só se envolvia com dependentes químicos. “Tive uma mãe espetacular, que sempre cuidou de mim, mas meu emocional estava totalmente destruído. Quando entendi que o amor dos homens não supriria a minha carência, corri para a igreja, onde conheci Aquele que me amou incondicionalmente”, relata ela que é membro da Igreja Getsêmani, em Bento Ribeiro, zona norte do Rio de Janeiro (RJ). “Jesus me curou e preencheu aquele vácuo que havia em mim. O amor do Pai celestial nos conduz à cura.”

O estudante Júlio Ferreira Ribeiro conta que, depois de conhecer o Senhor Jesus, foi aprendendo, aos poucos, que o Altíssimo era seu Pai celestial e que Ele o amava muito mais que seu pai terreno
Foto: Arquivo pessoal

Já a história do estudante Júlio Ferreira Ribeiro, 16 anos, revela o drama daqueles que não possuem o nome paterno na certidão de nascimento. “Não foi fácil ser um menino ‘sem pai’. Sentia a falta dele todos os dias”, relata o adolescente, assinalando que seu genitor se recusou a registrá-lo por não ter qualquer vínculo com a mãe do rapaz. “Sempre tive o amor e os cuidados dela. Porém, quando criança, costumava olhar para o céu e perguntar: ‘onde está o meu pai?’ A resposta não vinha, e eu seguia em frente.”

Membro da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) Taquara 1, na zona oeste carioca, o jovem conta que, depois de conhecer o Senhor Jesus, foi aprendendo, aos poucos, que o Altíssimo era seu Pai celestial e que Ele o amava muito mais que seu pai terreno. “A força que encontrei nEle me deu a paz de que tanto necessitava. Mesmo sem ter a presença do meu progenitor, consegui entender o amor de Deus e aceitá-Lo, pois sei que sempre esteve ao meu lado.”

O soldador Renato Marinho Farias recorda: “Aprendi que, quando perdoamos, nosso coração fica apto a entender que o Altíssimo transforma a nossa vida. […] O amor de Deus Pai é incondicional e não há como explicá-lo, só vivê-lo”
Foto: Arquivo pessoal

O soldador Renato Marinho Farias, 41 anos, tem uma história semelhante. Membro da Comunidade Shamah, em Pendotiba, na cidade de Niterói (RJ), ele nunca conheceu o genitor. “Sequer recebi seu sobrenome. Minha mãe me criou sozinha. Entendi o amor divino, quando percebi que o Senhor cuidava de mim em todos os momentos difíceis pelos quais passava.” A partir dessas experiências com o Todo-Poderoso, Farias passou a compreender também a necessidade de perdoar o homem que o havia abandonado ainda tão pequeno. “Aprendi que, quando perdoamos, nosso coração fica apto a entender que o Altíssimo transforma a nossa vida. A partir de então, compreendi que havia sido gerado para fazer a diferença e cumprir os planos divinos. O amor de Deus Pai é incondicional e não há como explicá-lo, só vivê-lo.”

A corretora de imóveis Mary Cerneviva compreendeu que ter Deus como Pai leva o cristão a desfrutar de segurança, cuidado e dependência: “Hoje, tenho uma família linda”
Foto: Arquivo pessoal

Entretanto, o processo de reconhecer o Criador como um Pai que ama incondicionalmente pode ser difícil para algumas pessoas. É o que relata a corretora de imóveis Mary Cerneviva, 42 anos. Segundo ela, o senso de rejeição a fazia enxergar o Senhor como alguém a quem precisava honrar e obedecer desesperadamente para que não desistisse dela. “Frequento a igreja desde os 14 anos e tinha muitos conflitos em relação ao amor paternal de Deus. No entanto, ao longo da caminhada cristã e da proximidade com Ele, entendi que fomos formados à Sua imagem e semelhança [Gn 1.26], e que o Senhor nos fez de modo assombrosamente maravilhoso [Sl 139.14]”, relata Mary, assinalando que entender que a filiação do cristão se dá por intermédio de Jesus (Jo 1.12), e não por esforços próprios, foi crucial nesse processo. “Ele nos amou primeiro, e Seu amor não muda.”

Com o tempo, Mary Cerneviva compreendeu também que ter Deus como Pai leva o cristão a desfrutar de segurança, cuidado e dependência. “Hoje, tenho uma família linda, e a ligação do meu marido − que é um pai amoroso, protetor e provedor com os nossos filhos −, fez-me enxergar o amor de Pai que do Criador sente pelos Seus filhos. A referência de segurança, incentivo, proteção e provisão de Deus na estrutura familiar gera filhos emocionalmente saudáveis e seguros. Afinal, a família reflete o plano do Todo-Poderoso”, afirma a corretora, que é membro da Comunidade Cristã no centro de Poá (SP).

Orfandade em casa O Pr. Gilberto de Sousa Oliveira, 37 anos, da Igreja Batista do Povo, em Vila Mariana, zona sul de São Paulo (SP), ressalta que, mesmo tendo crescido em um lar disfuncional, sem a figura paterna, compreendeu e recebeu bem o amor do Pai celeste. “Muitas pessoas têm dificuldade de se comunicar com Deus por Ele Se revelar como Pai”, afirma o líder, recordando-se de que maneira chegou a essa conclusão: “Entrei em uma igreja e ouvi do pastor que devemos nos aproximar do Altíssimo em oração, dizendo: Pai-nosso. Meu coração explodiu de alegria, e logo me entreguei àquele relacionamento. Naquele instante, descobri que tinha um Pai que não me abandonou”.

O Pr. Gilberto de Sousa Oliveira ressalta que, mesmo tendo crescido em um lar disfuncional, sem a figura paterna, compreendeu e recebeu bem o amor do Pai celeste: “Descobri que tinha um Pai que não me abandonou”
Foto: Arquivo pessoal

Entretanto, Oliveira ressalta que, para aceitar a paternidade do Todo-Poderoso, a pessoa precisa estar disposta a se conectar com Ele, conforme a Bíblia ensina em João 1.12: Mas a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: aos que creem no seu nome. Além disso, o ministro batista chama atenção para a necessidade de a Igreja ser participativa e sábia nesse processo. “Ela tem de receber pessoas que estejam passando por problemas e ajudá-las com o discipulado, ensinando-as a viver em família seguindo os moldes cristãos. Muitos adolescentes que frequentam nossos templos me veem como exemplo, pois alguns vêm de lares disfuncionais. A Igreja precisa acolher os órfãos e, acima de tudo, estar atenta à orfandade de filhos cujos pais estão dentro de casa.”

O Pr. Gilson Bifano lembra que a infância desenvolvida sem a figura do pai pode causar desajustes na vida adulta: “Crianças que crescem sem uma paternidade positiva têm maior probabilidade de se tornarem adultos com falhas em sua identidade sexual, por exemplo”
Foto: Arquivo pessoal

Na opinião do Pr. Gilson Bifano, 63 anos, líder da Primeira Igreja Batista da Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), e diretor do Oikos, um ministério de apoio à família, muitas comunidades evangélicas têm falhado na valorização da paternidade e devem despertar para isso. “É preciso desenvolver o trabalho com crianças e adolescentes, incentivando os homens a atuar no ministério infantil e conscientizando-os a adotar espiritual e emocionalmente meninos e meninas que não têm pais presentes.”

Bifano lembra que a infância desenvolvida sem a figura do pai pode causar desajustes na vida adulta. “Crianças que crescem sem uma paternidade positiva têm maior probabilidade de se tornarem adultos com falhas em sua identidade sexual, por exemplo”, alerta o ministro, salientando que é necessário despertar avôs e tios para que ajudem esses jovens, mostrando-lhes uma masculinidade positiva, cristã e saudável. “José, pai adotivo de Jesus, é um modelo a ser seguido. Esse homem foi um líder em sua família, um referencial de cidadão sensível à voz de Deus, um trabalhador exemplar e presente na vida de Cristo.”

O Pr. Dalton Cesar Filho concorda que a Igreja precisa reforçar a mensagem de que o Altíssimo é um Pai amoroso e justo: “Não vejo algo mais concreto do que a cruz de Cristo e o que toda a Sua obra nos revela: o Evangelho é a expressão do amor do Pai”
Foto: Arquivo pessoal

O Pr. Dalton Cesar Filho, 34 anos, da Igreja da Graça na Cidade de Deus, zona oeste carioca, concorda que a Igreja precisa reforçar a mensagem de que o Altíssimo é um Pai amoroso e justo. Ele afirma que para isso é necessário deixar de lado a visão distorcida de um Deus mau e punitivo, que muitos líderes carregam por suas próprias referências paternas. “Se, ao chegarem à Igreja, as pessoas ouvirem a respeito de um Pai que as condena, rejeita e castiga caso não desempenhem bem suas atividades, como terão suas carências supridas?”, questiona o pastor.

Na opinião do líder, a solução para o problema dessa orfandade, embora possa parecer ”simplória” aos olhos de alguns, é a proclamação da mensagem de Jesus, pois, somente por intermédio dEle, homens pecadores e carentes da graça divina são adotados como filhos. “Não vejo algo mais concreto do que a cruz de Cristo e o que toda a Sua obra nos revela: o Evangelho é a expressão do amor do Pai”, conclui.

Foto: Liza5450 – Gerada com IA / Adobe Stock

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