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Projeto de lei tramitando no Parlamento francês prevê medidas que podem restringir atividades de igrejas cristãs no país
Por Evandro Teixeira
Nos últimos anos, a França tem sido palco de uma série de atentados terroristas. Um deles aconteceu em outubro de 2020, quando o tunisiano Brahim Aioussaoi entrou com uma faca na Basílica de Notre-Dame, em Nice, no Sul do país, e matou três pessoas – entre elas, a brasileira Simone Barreto Silva, 40 anos. Testemunhas disseram que o assassino, um extremista muçulmano, repetia, sem parar, a seguinte frase: Allahu Akbar (em tradução livre: Alá é grande).
Mas o pior de todos esses ataques violentos sucedeu na noite de 13 de novembro de 2015, quando radicais islâmicos promoveram um banho de sangue na capital, Paris. Três homens invadiram a boate Bataclan, atiraram nos frequentadores e detonaram explosivos que traziam em seus cintos, causando a morte de 90 pessoas. Na mesma noite, outros cafés e restaurantes parisienses foram alvos de atentados à bala. O saldo da barbárie: 130 mortos (incluindo alguns extremistas) e 416 feridos.
Duas semanas antes disso, um professor de História havia sido decapitado em um subúrbio parisiense. Samuel Paty, 47 anos, foi morto após mostrar caricaturas de Maomé, o profeta do Islã, em uma de suas aulas. Charges do fundador do islamismo já haviam motivado outro atentado na capital francesa, este contra a Redação do jornal satírico Charlie Ebdo, em janeiro do mesmo ano, que resultou na morte de 12 pessoas.
O histórico de ações terroristas sanguinárias perpetradas por seguidores do Islã já deixou mais de 300 mortos na França e tem despertado grande preocupação entre as autoridades nacionais. Por isso, o presidente Emmanuel Macron tem buscado aprovar a Lei de Apoio aos Princípios Republicanos e Luta contra o Separatismo. O projeto, que pretende dar maior poder às forças de segurança para combater o terrorismo, ainda está em tramitação nas casas legislativas francesas: a Assembleia Nacional (a câmara baixa) e o Senado (a câmara alta). Dentre as medidas propostas, destacam-se o rastreamento e a limitação de financiamento estrangeiro a programas ligados a quaisquer grupos religiosos (com o objetivo de reduzir o aporte financeiro externo de células terroristas) e maior controle sobre as organizações voltadas à formação de clérigos de todos os credos. A proposta ainda prevê sanções severas contra a promoção de ideias que atentem contra os valores democráticos franceses, incluindo o fechamento de templos religiosos.
A primeira versão da lei foi aprovada na Assembleia Nacional em fevereiro. Em seguida, o projeto seguiu para o Senado e lá, apesar de ter sofrido algumas alterações, também foi aprovado. Agora, o documento se encontra na Comissão Mista, em que deputados e senadores, após nova análise, vão submetê-lo à votação final na Assembleia Nacional. Sendo aprovada, a proposta segue ao presidente da França para ser promulgada em até 15 dias. Se desejar, Macron poderá solicitar um novo exame do texto, que seria analisado pelo Conselho Constitucional, para verificar se o documento está de acordo com a Constituição.
Apesar dos aparentes benefícios à segurança nacional, a proposta de lei está longe de ser um consenso no país. Por seu caráter genérico, o projeto prevê medidas restritivas para membros e organizações de todos os credos religiosos, inclusive as igrejas cristãs. Críticos da proposição garantem que ela põe em xeque a liberdade religiosa e atinge em cheio as atividades missionárias realizadas em território francês. Para o diretor-geral do Conselho Nacional dos Evangélicos na França (CNEF), Clément Diedrichs, o governo francês não deseja mais proteger qualquer segmento religioso. A Federação Protestante da França (FPF), a qual reúne evangélicos e luteranos, demonstrou preocupação com o teor da proposta. Os cristãos evangélicos não são perigosos, declarou François Clavairoly, presidente da FPF.
Contra a violência – Enquanto o projeto de lei é discutido, várias organizações cristãs estão pressionando os legisladores franceses, buscando amenizar seu impacto sobre as igrejas. Contudo, as objeções à proposta legislativa acenderam a ira do ministro do interior francês, Gérald Darmanin. Referindo-se aos evangélicos, em uma entrevista concedida à emissora de rádio France Inter, ele declarou: Não podemos discutir com pessoas que se recusam a aceitar que a lei da República é superior à lei de Deus. Em outra entrevista, concedida à rede de televisão CNews, o responsável pela segurança interna do país foi além na esdrúxula comparação: Os evangélicos são um problema importante. Obviamente, não um problema da mesma natureza que o islamismo, que promove ataques terroristas e mortes.
Se por um lado ainda não é possível afirmar que há perseguição aos cristãos na França, por outro fica claro que existe um clima de mudança no comportamento das autoridades francesas, as quais procuram criar leis que poderão resultar em restrições à liberdade de culto. A França não consta na Lista Mundial da Perseguição, ranking elaborado anualmente pela Missão Portas Abertas, a qual classifica os 50 países mais intolerantes à fé cristã. No entendimento do secretário-geral de Portas Abertas no Brasil, Marco Cruz, ainda é cedo para dizer qual é a real situação dos crentes que vivem em território francês. “Estamos atentos a qualquer tipo de mecanismo que venha colocar a liberdade religiosa do cristão francês em risco.”
O Pr. Silas Marchiori Tostes, presidente da Missão Antioquia, observa, com preocupação, a possibilidade de haver restrição de recebimento de recursos financeiros do exterior e da vigilância sobre o discurso dos religiosos. “Um princípio bíblico defendido pela Igreja pode ser entendido como uma afronta à lei”, exemplifica Tostes, assinalando que as organizações cristãs precisam mostrar às autoridades francesas que os grupos extremistas não representam a maioria dos religiosos. “Devem deixar claro que a maior parte é contra quaisquer atos de violência.”
Falta de compreensão – O Pr. Alexandre Miglioranza, líder da Igreja Batista em Montpellier, no Sul da França, afirma que o problema da proposta em discussão no Parlamento é justamente seu caráter genérico. “O governo não consegue estabelecer leis que sejam voltadas especificamente para os grupos radicais por temer acusações e processos de xenofobia.” Mas, apesar de tudo o que está acontecendo, Miglioranza reconhece ser precipitado falar em perseguição religiosa. Além disso, entende que, independentemente das circunstâncias, o cristão deve sempre testemunhar a respeito de sua fé. “Em toda situação, devemos compartilhar o que temos recebido de Deus.”
A professora de História Deise Melo argumenta que, via de regra, o dispositivo legal preza por não privilegiar nenhuma religião, tratando todas da mesma forma. “Caso haja um tratamento diferenciado para determinado grupo religioso, o governo estará cometendo intolerância religiosa.” Para o professor de História Juarez Alves Pereira, o impacto dessa proposta francesa só poderá ser medido no decorrer do tempo. No entanto, entende que dar aos cristãos o mesmo tratamento destinado aos radicais islâmicos evidencia falta de compreensão não apenas política como também eclesiástica. “Por princípio, o cristianismo se baseia na verdade, na paz e no respeito às leis locais e às políticas de Estado.”
Entendimento semelhante tem o Pr. José Costa Júnior, doutorando em Teologia e membro da Assembleia de Deus em Dourados (MS). Para ele, a situação que se desenha em terras francesas é fruto de uma cosmovisão secularista que tende a ver a religião cristã como preconceituosa, intolerante e exclusivista. De acordo com ele, o secularismo – disfarçado de vários nomes, como pluralismo e relativismo – tem construído uma narrativa que visa classificar as crenças cristãs como inadequadas a um convívio social civilizado. “O combate ao islamismo radical seria apenas uma justificativa plausível para a adoção de medidas que atinjam o cristianismo.”
Conforme explica o Pr. Douglas dos Santos Paiva, líder regional da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Santa Luzia (MG), a história cristã mostra que a Igreja não está livre de medidas que visem parar a sua caminhada. “Os servos de Deus sempre sofreram algum tipo de ação restritiva por parte de autoridades”, pontua, usando como exemplo o profeta Daniel, que foi lançado na cova dos leões (Dn 6.16).
Mesmo ciente de que a situação na França não se constitui ainda em perseguição religiosa, Paiva teme que aquele país europeu siga o caminho de nações, como China e a Coreia do Norte, onde os cristãos são duramente oprimidos. E, mesmo em uma situação extrema, observa ele, as palavras de Jesus continuam atuais: Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem, e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós (Mateus 5.11,12).
Povo dividido
Para entender esse momento político-religioso da França, é preciso conhecer alguns pontos a respeito do país, sobretudo sua formação populacional. O professor de Geografia Leonardo Ferreira de Oliveira (foto) destaca que, ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o país recebeu muitos imigrantes, principalmente para a reconstrução das cidades. “Por causa de sua proximidade geográfica, a maior parte dessa mão de obra veio do Norte da África, sendo, em sua maioria, muçulmanos”, informa, destacando que, atualmente, eles constituem cerca de 8% da população francesa, totalizando 7,4 milhões de pessoas.
Entretanto, dados apresentados pela Comissão Nacional Consultiva de Direitos Humanos francesa demonstram que a relação entre os franceses e esses imigrantes não tem sido amistosa. Um relatório da Comissão, divulgado em 2020, identificou 5.730 crimes de motivação racista apenas no ano de 2019. (Fontes: The World Factbook – CIA e RFI)