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Foto: Divulgação / Wycliffe Bible Translators

Acesso à Palavra

Graças aos esforços de inúmeros missionários tradutores, a Bíblia hoje está acessível na língua nativa de quase seis bilhões de pessoas

Por Patrícia Scott

No início de 2023, as Escrituras Sagradas estavam disponíveis em 733 idiomas falados por 5,9 bilhões de pessoas em todo o planeta − esse número representa mais de dois terços da população mundial. Nunca antes a Bíblia foi traduzida para tantas línguas diferentes; no entanto, apesar desse avanço histórico, a tarefa está longe de ser concluída, pois tal resultado alcança apenas a décima parte dos sete mil idiomas e dialetos falados no mundo.

Entretanto, devido ao empenho de incontáveis servos de Deus espalhados pelos quatro cantos do planeta, imbuídos da missão de traduzir o Livro Santo, o trabalho está avançando a passos largos. O Novo Testamento completo já foi vertido para 1.622 línguas, e outros 1.255 idiomas contam com porções do Texto Sagrado. Significa dizer que 7,2 bilhões de pessoas podem ter acesso a uma parte da Palavra em seu idioma nativo.

Dirk Gevers, secretário-geral das SBU, escreveu: A história única e poderosa das SBU é que elas têm o coração na tradução da Bíblia. Nossas equipes estão na linha de frente, enquanto se esforçam para liberar o poder transformador da Palavra de Deus para suas comunidades
Foto: Divulgação

O ano de 2022 foi particularmente produtivo em relação à tradução da Bíblia. Somente as Sociedades Bíblicas Unidas (SBU) forneceram novas traduções ou revisões das Escrituras em 25 línguas faladas por mais de 623 milhões de pessoas. Das 57 traduções publicadas pela primeira vez pelas SBU em 2022, 14 eram exemplares completos da Bíblia. Além disso, cinco comunidades foram contempladas com a primeira tradução do Novo Testamento na língua materna delas, uma na América Latina, outra na África e três na Ásia. E, em todo o mundo, porções do Texto Santo foram traduzidos, pela primeira vez, para 38 línguas – do egípcio coloquial, falado por 77 milhões de pessoas, ao lule sámi, dialeto utilizado por pouco mais de duas mil pessoas na Suécia. A história única e poderosa das SBU é que elas têm o coração na tradução da Bíblia. Nossas equipes estão na linha de frente, enquanto se esforçam para liberar o poder transformador da Palavra de Deus para suas comunidades, ressaltou Dirk Gevers, secretário-geral das SBU, em texto publicado no site da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB).

O Rev. Paulo Roberto Teixeira, secretário de Tradução e Publicações da SBB, afirma que as traduções são essenciais para que a Bíblia seja compreendida pelas pessoas: “Não há igreja sem a Palavra, e a Palavra traduzida alcança as pessoas”
Foto: Divulgação / SBB

O Rev. Paulo Roberto Teixeira, secretário de Tradução e Publicações da SBB, ressalta que o processo histórico da Igreja Cristã é a história das missões e das traduções. “Em algumas vezes, a Bíblia chegou primeiro, e o Espírito Santo, a partir das Escrituras, formou a Igreja. Em outras, os missionários chegaram, e, com a ajuda do povo, a Livro Sagrado foi traduzido para aquela língua”, explica o pastor, lembrando que a vontade de Deus é de que Sua Palavra seja plenamente compreendida pelos leitores, na língua materna de cada um deles. Para que isso se torne realidade, afirma Teixeira, as traduções são essenciais. “Não há igreja sem a Palavra, e a Palavra traduzida alcança as pessoas.”

Foto: Divulgação / Adam Jeske

Porém, traduzir a Bíblia é uma tarefa árdua que pode levar muito tempo para ser concluída. Em razão da complexidade da empreitada, Paulo Roberto destaca três desafios para que um novo projeto desse tipo seja iniciado. O primeiro é o despertamento de novos vocacionados para essa obra, a qual pode consumir muitos anos de trabalho antes de ser finalizada. “Tradutores concluem projetos os quais não iniciaram e iniciam projetos que outras equipes concluirão. Essa perspectiva de longo prazo assusta as gerações mais novas, habituadas ao imediatismo e a mudanças constantes na carreira profissional”, analisa.

O segundo é o ajuste do tradutor ao perfil de cada projeto. “Embora haja metodologias bem estabelecidas, cada trabalho de tradução tem suas especificidades, o que demanda talento e discernimento do profissional para se adaptar em termos linguísticos e culturais.” Por fim, o terceiro é o apoio das igrejas para a manutenção das equipes de tradução, tanto por meio das orações quanto no custeio financeiro. O secretário da SBB explica ainda que um tradutor, ou consultor de tradução, precisa passar por ampla formação multidisciplinar, como em Teologia, Antropologia, Missiologia, Linguística e Tradutologia (a ciência da tradução). “É uma formação que avança por toda a vida, pois o tradutor precisa estar sempre atualizado.”

O Prof. José Ribeiro Neto, doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica, destaca que o investimento no processo de tradução é bastante alto: “Envolve muitos profissionais, como tradutores, linguistas, revisores, teólogos, editores, designers gráficos”
Foto: Arquivo pessoal

Letras e sinais – Disponibilizar a Palavra de Deus nos mais diversos idiomas não se restringe a países longínquos da Ásia ou África, dentro do território brasileiro existe uma grande variedade de idiomas que ainda não têm uma versão da Bíblia. Segundo dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no Brasil, são faladas mais de 250 línguas, em sua maioria dialetos indígenas, as quais apenas quatro já possuem o Livro Sagrado completo traduzido. O Novo Testamento, entretanto, está disponível em 38 das línguas nativas brasileiras.

Há também outras dezenas de idiomas utilizados por agrupamentos de imigrantes em nosso país, além de duas línguas de sinais que atendem às comunidades surdas. Muitos indivíduos desses grupos são monolíngues, isto é, utilizam apenas seu idioma nato e não dominam o português. Outros, embora bilíngues, não estão alfabetizados em Língua Portuguesa e, portanto, não têm acesso ao Texto Sagrado escrito.

Foto: Divulgação /Museum of the Bible

Existem aqui também muitas línguas ágrafas, aquelas utilizadas por grupos que ainda não têm qualquer forma de registro escrito. Em todo o planeta, estima-se que 45% dos idiomas falados estejam nessa condição. Os falantes desses idiomas são chamados de povos de tradição oral, já que a história, a cultura e as crenças deles são transmitidas de uma geração à outra apenas por meio da fala. Nesses casos, além de aprender a língua, o tradutor precisa transformar cada fonema do idioma em letras e sinais gráficos, o que leva tempo. Ademais, é necessário, com o passar do tempo, alfabetizar o povo, de modo que possa ler e interpretar o texto bíblico.

Curiosamente, uma das formas de acelerar o processo de tradução para essas culturas é justamente lançar mão da versão falada das Escrituras. Enquanto um trabalho de tradução da Bíblia escrita pode levar décadas, é possível finalizar a versão oral em alguns anos. No processo, a tarefa começa pela tradução de um livro, porção ou história bíblica. Uma primeira versão é gravada, passa por uma revisão para checagem da qualidade e, em seguida, é feita uma gravação definitiva, a qual é disponibilizada ao povo em questão. Para isso, são utilizados aparelhos de fácil operação que funcionam com energia solar.

A especialista Quéfren de Moura lembra que o tradutor precisa fazer uma exegese profunda e embasada, o que permitirá, assim, a elaboração de uma versão fiel [da Bíblia]
Foto: Arquivo pessoal

Exegese profunda – Seja qual for a maneira pela qual será distribuído o material traduzido, o investimento no processo de tradução é bastante alto. “Envolve muitos profissionais, como tradutores, linguistas, revisores, teólogos, editores, designers gráficos”, destaca o professor José Ribeiro Neto, doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica. Ele chama atenção para o fato de que, obrigatoriamente, o trabalho do tradutor precisa ser feito de forma meticulosa, respeitando o texto bíblico original, escrito em hebraico, aramaico e grego. “Por isso, é importante que os seminários e cursos de Teologia ampliem as aulas de línguas bíblicas. Historicamente, temos visto a diminuição e até a eliminação desses estudos”, lamenta o docente. [Leia, no final desta reportagem, o quadro A fonte das traduções]

Há ainda outros cuidados que os tradutores da Bíblia devem tomar, salienta Quéfren de Moura, editora, revisora, coordenadora de projetos de tradução para a América Latina das SBU e consultora de traduções da SBB. De acordo com ela, em primeiro lugar, o tradutor precisa estar conectado com a comunidade falante – tem de conviver com aquele grupo a fim de dominar o idioma. Além disso, a especialista destaca que bons tradutores devem ter amplo conhecimento bíblico, excelente repertório cultural, domínio do próprio idioma e bastante criatividade. “Dessa forma, ele poderá encontrar os melhores recursos que lhe permitam expressar toda a riqueza do texto bíblico em seu idioma.” Quéfren lembra que o profissional precisa fazer uma exegese profunda e embasada, o que permitirá, assim, a elaboração de uma tradução fiel. “Deve também trabalhar em equipe, ser assessorado por consultores capacitados e dialogar com a comunidade linguística para que o trabalho realizado seja submetido à avaliação e à validação dos falantes.”

Foto: Wikimedia

Na opinião de Moura, finalizar um projeto de tradução não é um fim em si mesmo: é necessário que o texto seja impresso, que exista o suporte de programas de alfabetização e que haja fortalecimento sociocultural para que o público-alvo da tradução seja capaz de ler a Bíblia. Além disso, ela lembra que, com o passar do tempo, pode ser necessária uma nova tradução e a revisão de textos antigos. “Tudo isso requer suporte humano, financeiro e estrutural, além de muito apoio em oração”, resume, reiterando, assim, o grande desafio que ainda está diante da Igreja de Cristo, apesar dos inegáveis avanços atuais.

A fonte das traduções

O Antigo Testamento (AT) foi escrito originalmente em hebraico (com algumas porções em aramaico) e o Novo Testamento (NT), em grego antigo. Os manuscritos originais, produzidos em pergaminho ou papiro, degradaram-se, naturalmente, com o passar dos anos. O que se tem hoje são apenas cópias de cópias. No entanto, apesar do tempo decorrido, o material existente é bastante confiável.

No caso do AT, os textos eram copiados com tanto cuidado, que muitos escribas contavam as letras no original e na cópia. “Caso o número não coincidisse, o manuscrito era descartado. Portanto, podemos ter certeza de que as traduções bíblicas são confiáveis devido à preservação rigorosa dos textos”, afirma o professor de Línguas Bíblicas Lucian Benigno, graduado em Grego Antigo pela Universidade de São Paulo (USP).

O professor de Línguas Bíblicas Lucian Benigno, graduado em Grego Antigo
Foto: Reprodução – YouTube

Até meados do século 20, as cópias mais antigas do AT disponíveis eram os chamados Textos Massoréticos, que datam, aproximadamente, do ano 895. “Com a descoberta dos manuscritos do mar Morto, em 1947, tivemos acesso a um escrito do segundo século a.C., fundamental para as traduções, permitindo, assim, verificar a precisão dos massoréticos”, pontua Quéfren de Moura.

Além desses, outras fontes manuscritas antigas incluem a versão em grego do AT: Septuaginta, traduções para o aramaico, chamadas de targuns, citações de autores cristãos da Antiguidade e a Vulgata, a versão para o latim feita no século 4 da Era Cristã. Quanto ao NT, há mais de cinco mil cópias manuscritas disponíveis atualmente. “Essas diversas fontes, junto com o trabalho de estudiosos especializados em Paleografia, Arqueologia e Crítica Textual, contribuem para um texto preciso e confiável para as traduções”, esclarece Quéfren.

Fragmento do Novo Testamento grego do século 12
Foto: Houston Christian University

Entretanto, embora os textos originais não apresentem muitas diferenças entre si, os leitores da Bíblia podem questionar o porquê existem tantas traduções em português. O Prof. Lucian Benigno aponta que as diferenças se explicam pelos princípios tradutológicos adotados por cada versão. Assim, traduções mais antigas são de compreensão mais difícil porque, em geral, fundamentam-se no princípio da equivalência formal. “Ou seja, sempre que possível, traduz-se ao ‘pé da letra’ cada palavra do original. Já as traduções mais recentes adotam a equivalência dinâmica, isto é, não se concentram tanto nas palavras, e sim em comunicar, com clareza, as ideias contidas no texto original”, informa Benigno. (Patrícia Scott, com colaboração de Élidi Miranda)

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