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Brasil está entre os cinco países onde mais ocorrem uniões matrimoniais com menores de 18 anos
Por Ana Cleide Pacheco*
Quando se fala em casamento infantil, alguém pode pensar que se trata de uma realidade restrita a países distantes e culturas muito diferentes da brasileira. Ledo engano: o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking mundial de países com maior ocorrência de uniões formais e informais que envolvem menores. O país fica atrás apenas de Etiópia, Índia, Bangladesh e Nigéria. Segundo dados de outro estudo, intitulado Perfil do casamento infantil e uniões precoces, do fundo das nações unidas para a infância (UNICEF), 26% das mulheres brasileiras se casaram ou passaram a viver com o parceiro antes de completar 18 anos de idade.
A definição internacional de casamento infantil – de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1989, que passou a vigorar em setembro de 1990 – é qualquer união formal ou informal antes dos 18 anos. O Brasil, signatário da CDC, admite, em sua legislação, casamentos de menores de 18 anos apenas se eles tiverem mais de 16 anos. Mesmo assim, para que ocorram tais uniões civis, é necessário haver a autorização de ambos os pais ou responsáveis ou uma permissão judicial para que o ato seja formalizado em cartório. Menores de 16 anos são proibidos de se casar no Brasil em qualquer circunstância desde 2019, quando foi sancionada a Lei 13.811/19. Entretanto, isso não impede que adolescentes muito jovens se envolvam em relacionamentos conjugais.
O número de casamentos de mulheres com idade até 17 anos teve uma queda expressiva de 55% no país de 2011 a 2019, de acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Denominado Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil, o levantamento – com base apenas em registros oficiais (de cartórios) – mostra que, em 2011, ocorreram 48.637 matrimônios no país nos quais a mulher tinha até 17 anos; em 2019, foram 21.769. Mesmo indicando acentuada queda, os números desse tipo de união civil são extremamente elevados e bastante preocupantes porque revelam uma prática ainda muito comum em território brasileiro. Especialistas chamam a atenção para o fato de que essa pesquisa inclui somente as uniões registradas: há ainda um sem-número de “casamentos” sem registro que envolvem até menores de 16 anos.
Em fevereiro, representantes do Ministério Público do Piauí apresentaram alguns dados à Comissão Externa Sobre Violência Doméstica Contra a Mulher da Câmara dos Deputados, esclarecendo que, no caso brasileiro, o casamento infantil, ao contrário do que ocorre em alguns países africanos e asiáticos, não tem influência de aspectos culturais e ritualísticos: são consensuais, ou seja, fruto de uma opção de adolescentes, ainda que motivada por uma série de fatores, como a pobreza. Segundo a promotora de Justiça do Piauí Flávia Gomes Cordeiro, entre as principais consequências do casamento infantil para as meninas, estão o aumento do serviço doméstico, o cuidado parental exercido predominantemente por elas, a falta de profissionalização, a exclusão do mercado de trabalho, o atraso ou mesmo o abandono escolar e a restrição da mobilidade e da liberdade. Cordeiro defende a mudança da legislação brasileira, que hoje permite o casamento aos 16 anos com a autorização dos pais. Para ela, as uniões civis só deveriam ser permitidas aos maiores de idade.
Estudiosos do assunto afirmam que essas uniões civis se devem a vários fatores. Na maioria dos casos, são adolescentes que vivem situações familiares conflituosas (e que se unem a alguém em busca de proteção); meninas que engravidaram precocemente e vulnerabilidade socioeconômica. Dados divulgados pela rede Girls Not Brides (em português, Meninas Não Noivas), que advoga pelo fim do casamento precoce em todo o mundo, mostram que adolescentes oriundas de famílias de baixa renda têm três vezes mais chances de se casarem antes dos 18 anos, quando comparadas àquelas que vêm de famílias em melhores condições socioeconômicas.
Baixa renda – O especialista em violência doméstica contra crianças e adolescentes Itamar Gonçalves, gerente da organização não governamental Advocacy da Childhood Brasil(que atua para conter a exploração e o abuso sexual de menores), enfatiza que outro fator a explicar tantas uniões precoces são os abusos sofridos dentro da própria casa. “Pesquisas apontam que, a cada 15 minutos, uma criança ou um adolescente é vítima de abuso sexual”, pontua Gonçalves, assinalando que há até mesmo situações em que o menor acredita ter encontrado “o amor de sua vida” e queira deixar a família para viver com outra pessoa. “Enfim, são muitas situações e, por isso, é importante colocar a criança como prioridade. Penso que saúde e educação têm papel estratégico nessa discussão. Não vamos conseguir melhorar esses números se não trabalharmos com prevenção”, defende.
Outro aspecto crucial relacionado ao casamento infantil é a questão do gênero. De acordo com o IBGE, dos mais de 21 mil adolescentes que se casaram no Brasil em 2019, 90,8% eram do sexo feminino. Essas meninas – em sua maioria, vindas de famílias de baixa renda – buscam alguém que possa suprir suas necessidades emocionais e materiais, mas acabam enfrentando outros dramas. Profissionais afirmam que o tema merece atenção redobrada das autoridades e lembram que cabe ao Estado prover políticas públicas de prevenção e de redução de danos.
Para a psicóloga Beatriz Montavaneli, 24 anos, o casamento infantil levanta inúmeras discussões no âmbito do poder público, principalmente quanto à negligência na garantia das prerrogativas legais dos menores de idade. “O casamento infantil representa uma grave violação aos direitos humanos, uma vez que toda criança e todo adolescente possui direito à sobrevivência e ao desenvolvimento, acesso à saúde, informação e educação”, enumera. De acordo com a profissional, as consequências prejudiciais de uma união matrimonial tão precoce são inúmeras: prejuízos psicológicos, físicos, emocionais e sociais, desequilíbrio no desenvolvimento humano (gravidez inoportuna, por exemplo), maior exposição à exploração, abusos e violências, traumas emocionais, doenças físicas e psicológicas, entre outros. “Um fato importante, que reforça e mantém essa barbárie, é ser fruto de uma cultura enraizada em nós, de essa ser uma prática antiga. A mudança dessa realidade envolve modificações em níveis diversos: saúde, educação, cultura, estado, ciência e outros.”
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a assistente social Márcia Monte, especialista no enfrentamento à violência doméstica contra crianças e adolescentes da organização não governamental Visão Mundial, aponta outra consequência do casamento infantil: o abandono escolar. De acordo com ela, a tendência das adolescentes que se casam ou se tornam companheiras é que assumam a responsabilidade de cuidar da casa, perpetuando a desigualdade de gênero e o ciclo de violências contra meninas e mulheres. Membro da Assembleia de Deus Canaã, localizada no bairro Passaré, em Fortaleza (CE), Márcia Monte acredita que a orientação é sempre o melhor caminho. “No Brasil, trabalhamos com um programa de prevenção e proteção às violências dentro das escolas. O nosso maior objetivo é orientar e, assim, prevenir a gravidez e o casamento precoces. Porque a questão é esta: prevenir antes que aconteça.”
“Verdadeira identidade” – Dentro dessa perspectiva de conscientização, o advogado Flávio Augusto Sandes Carvalho, 60 anos, defende ser fundamental o papel exercido pelas comunidades cristãs. “Quando as congregações se propõem a ser igrejas evangelísticas, e não apenas ‘prédios’, elas devem se envolver com sua comunidade e mostrar o real plano de Deus para o homem e para a mulher: todas as fases devem ser cumpridas”, indica Carvalho, referindo-se ao desenvolvimento do homem, criado pelo Altíssimo.
O Pr. Raimundo Nonato Caetano Pereira, 39 anos, da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em São Lourenço da Mata (PE), concorda que as igrejas desempenham uma função relevante no processo de conscientização. Segundo ele, o Evangelho se opõe frontalmente à tolerância da sociedade às atitudes erradas que afetam as vidas de crianças e adolescentes. “Em minha opinião, o principal motivo para que tantos casamentos infantis aconteçam nos dias de hoje, apesar de existirem leis contrárias a essa prática, é o fato de que vivemos um tempo no qual a sexualidade exacerbada está no seio de nossa cultura”, ressalta o ministro, lembrando que as crianças são apresentadas à sensualidade ainda na infância, por meio da televisão, da música, do cinema e de outras atividades culturais. “Dessa forma, o sexo e até mesmo as uniões consensuais entre aqueles que são muito jovens se tornam uma coisa completamente normal, não só para eles como também para seus familiares.”
Pereira defende a ideia de que cabe à Igreja, diante de quadro tão grave, ajudar no fortalecimento das famílias mediante a propagação dos princípios cristãos. “Não existe outro caminho possível capaz de proteger nossas crianças e nossos jovens que não seja reestruturar a família dentro dos padrões bíblicos. Não acredito que alguma legislação, seja qual for, possa impedir um comportamento que já está presente no coração das pessoas. É esse o papel fundamental da Igreja: trazer de volta a verdadeira identidade familiar que está no Senhor Jesus”, defende. (*Com informações da Agência Câmara de Notícias, UNICEF e IBGE)